sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

César Felício*: A arbitragem de perdas

- Valor Econômico

Bolsonaro está fadado a fazer a reforma possível

As reformas da Previdência de hoje, em regra, são um jogo onde quase todos perdem. A regra vale para o Brasil e para o mundo. Arma-se um cenário em que se tem, de um lado, o Estado, tentando reter recursos, e do outro dependentes de assistência social, trabalhadores, empregados públicos, em alguns casos empresários, todos submetidos a rodadas adicionais de sacrifícios, pagando mais e trabalhando mais. Nada mais fácil do que armarem-se grandes frentes contra a reforma.

No ano passado, Putin aproveitou a distração na Rússia provocada pela Copa do Mundo para propor uma reforma da Previdência elevando de 60 para 65 anos a idade mínima para homens e de 55 para 63 a das mulheres. Houve grandes protestos populares e Putin foi obrigado a ceder um pouco para obter a chancela do Congresso.

A proposta de Bolsonaro impõe perdas a quase todos, ainda que de forma assimétrica - a base é mais poupada do que o topo - e há um ganhador, o sistema financeiro, a depender do avanço da capitalização. É natural a resistência ao projeto e a tendência que sua aprovação não seja sumária e seu conteúdo seja diluído. Isto não quer dizer que o ambiente para a vitória governista não exista, como já se tratou nesta coluna, mas demandará grande capacidade da articulação da base em saber a hora de ceder e estabelecer as linhas das quais não poderá transigir. Por enquanto esta linha ainda não foi traçada, já que o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, disse que não há nenhum ponto intocável na PEC da Previdência, conforme relatou a repórter Ana Krüger no Valor PRO na tarde de ontem.

A reforma da Previdência de Bolsonaro, conforme o que venha a ser proposto em relação à capitalização, carrega uma ironia, em se tratando de um governo com tamanha participação de militares de reserva: marca a reversão de um modelo de seguridade social impulsionado nos governos Castelo Branco, Médici, Geisel e Figueiredo. Retorna-se a um dos fundamentos do que havia antes.

Quando o sistema previdenciário começou a ganhar corpo no Brasil, nos anos 30, o regime que havia era o da capitalização. Getúlio centralizou as antigas caixas de pecúlio nos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) conforme a corporação. Havia o dos servidores do Estado, o dos marítimos, o dos bancários, o de transportes e cargas, o dos comerciários e assim por diante. A contribuição era tripartite: aportavam o Estado, o setor patronal e o trabalhador. O benefício seria concedido conforme o que fosse acumulado, individualmente. Quem dava as cartas era o Ministério do Trabalho, e esta é uma diferença essencial em relação ao modelo bolsonarista.

No Brasil de Vargas, em uma primeira fase o regime de capitalização depauperou as aposentadorias, conforme demonstram os pesquisadores Lara Lúcia da Silva e Thiago de Melo Teixeira da Costa, no artigo "A Formação do Sistema Previdenciário Brasileiro: 90 anos de história", de 2016, disponível no site da "Revista Administração Pública e Gestão Social". Em 1931, o valor da aposentadoria média era de R$ 18.442,37 por ano, em valores de 2015. Em 1945 caiu para ridículos R$ 5.744,86. Os fundos, contudo, se acumulavam: em 1939 o saldo correspondia a 70,8% da receita.

No período histórico seguinte, entre 1946 e 1964, o caixa dos IAPs tornou-se o motor da máquina política ancorada no clientelismo. À época não havia separação entre o sistema de saúde e o da previdência e os institutos criaram hospitais para seus segurados. O gasto com assistência médica em relação à receita sobre contribuições pulou de 3,6% para 26% entre 1947 e 1965. Mas cada um cuidava da sua corporação: em uma lógica de capitalização, ainda que sob controle estatal, a universalização do bem-estar social não fazia sentido.

O caixa dos IAPs também bancou investimentos de infraestrutura, como os da Chesf, por exemplo. Como o sistema de financiamento era tripartite, o ônus do Tesouro aumentava conforme a expansão do sistema, que pulou de 2,7 milhões de segurados em 1945 para 4,4 milhões em 1960. À medida que a crise fiscal do governo se agravava, o Estado retardava seus aportes. Quando os militares tomaram o poder, em 1964, a capitalização comandada pelo Estado era um regime falido.

Por meio de diversas medidas, os governos militares implantaram o regime de repartição, agora em declínio. Os IAPs foram unificados no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), o financiamento passou a ser exclusivamente do trabalhador e das empresas, o Estado ficou com o comando. Na Constituição de 1967, imposta por Castelo Branco, estabeleceu-se a diferença de cinco anos entre a aposentadorias de homens e mulheres. No governo Médici, a aposentadoria foi estendida ao trabalhador rural, independentemente de contribuição. No de Geisel, a gestão do sistema de saúde foi transferida para uma autarquia separada. Figueiredo calibrou o financiamento, estabelecendo que aposentados e servidores deveriam contribuir para o sistema e aumentando as alíquotas previdenciárias do setor privada.

A previdência social daquele tempo, está claro, era injusta, mas se tornou mais universal do que era antes. Não havia preocupação em cortar benefícios, a inflação se encarregava de corroer seus valores. O que se quer argumentar com esta digressão histórica é que a concepção do modelo previdenciário que nos anos 90 começou a ser reformado nasceu no período militar. E tal como o modelo anterior, ele também faliu.

Com a redemocratização, os quatro presidentes que reformaram a Previdência miraram no corte de benefícios, sempre de maneira insuficiente para conter a escalada do déficit. Coube a Fernando Henrique substituir o tempo de trabalho pelo tempo de contribuição, como pré-requisito de aposentadoria e desestimular as requisições precoces com o fator previdenciário. Lula limitou o benefício integral para o funcionalismo que entrasse na máquina pública de 2003 em diante. Dilma regulamentou os fundos complementares para os servidores públicos. Temer nada conseguiu, mas não por falta de tentativa. Tiveram todos o azar, por assim dizer, de serem obrigados a arbitrarem perdas dentro da lógica democrática. Bolsonaro também terá o ônus de fazer uma reforma incompleta. Outras virão.

*César Felício é editor de Política.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nenhuma linha sobre a questão demográfica? Como se faz uma análise de Previdência sem tocar nisso?