Há um jabuti enorme e luzidio no projeto de reforma da Previdência - um generoso favor a empregadores interessados em demitir funcionários já aposentados. Se o texto for aprovado com essa aberração, aposentados serão demissíveis sem a multa de 40% sobre seu Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Ninguém se surpreenderá se empresários aplaudirem a mudança. Mas haverá uma grande surpresa se o ministro da Economia, Paulo Guedes, conseguir explicar a relação entre essa novidade e a redução do buraco no sistema de aposentadorias e pensões. Jabutis, no jargão político, são itens introduzidos de contrabando em projetos de lei ou em textos de medidas provisórias. Os autores da manobra são geralmente congressistas. Desta vez, o pacote foi entregue ao Legislativo já com o bicho misturado aos componentes normais. O Executivo fez todo o serviço, antecipando-se à esperteza de algum parlamentar.
Aprovado o projeto, quem se aposentar e continuar empregado também deixará de receber o depósito mensal do FGTS. Se o contrato for anterior à vigência da nova lei, o depósito será mantido, mas a multa por demissão sem justa causa será eliminada. As finanças da Previdência em nada serão beneficiadas com essas alterações. Não há, portanto, como descaracterizar o contrabando, mas o ministro da Economia ainda teria de explicar um detalhe: o governo também deixará de receber, nesse caso, a multa equivalente a 10% do saldo do FGTS? Deixará, obviamente, quando o depósito mensal já tiver sido extinto. E antes disso?
Pode-se discutir se a multa de 40% hoje paga nas demissões de aposentados é justificável ou, mais simplesmente, se a mudança atenderá ao interesse geral dos trabalhadores. Não será uma discussão simples nem a alteração será livre de riscos importantes. Mas o debate sobre a flexibilização dos contratos tem sentido econômico e deve ser parte normal da vida política. Inaceitável é o contrabando legislativo, a tentativa de mudar uma regra trabalhista de forma obscura, no meio de um debate, amplo, difícil e de alcance muito maior, como é o da reforma do sistema previdenciário.
De nenhum modo o ministro da Economia pode alegar ignorância desse detalhe. Ele comandou a elaboração do projeto, discutiu-o com parceiros do governo e de fora e é o responsável principal por seus méritos inegáveis, por seus defeitos e por esse jabuti.
O ministro é conhecido como defensor de uma legislação trabalhista mais flexível e mais favorável à negociação livre entre as partes. O sistema já ganhou flexibilidade com a reforma aprovada no governo anterior e ainda testada muito limitadamente. Aparentemente sem paciência para esperar mais tempo, o ministro da Economia lançou a ideia, por enquanto obscura, de uma carteira de trabalho verde-amarela, com espaço muito mais amplo para negociação - e, portanto, para imposição da vontade da parte mais forte. A primeira resposta foi um esboço de legislação apresentado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) - quase uma explosão de entusiasmo diante da perspectiva de barateamento da mão de obra.
Há um velho e justificável debate no Brasil sobre a redução dos custos do emprego, com simplificação, por exemplo, das obrigações contratuais e previdenciárias. Mas isso tem a ver com questões de competitividade, crescimento econômico e criação de empregos. Não tem relação direta com o conserto das finanças do sistema de aposentadorias e pensões. Não cabe, portanto, num projeto decente de reforma da Previdência, exceto como contrabando e como prestação de favor a empregadores. Falta saber se a todos ou a alguns.
Antes de tratar do barateamento do emprego e da demissão, principalmente da demissão, o ministro acertará se cuidar do crescimento e da abertura de vagas. Como começo, será bom limpar de jabutis e de outros animais indesejáveis o projeto da Previdência e batalhar por uma reforma eficiente. Em seguida, valerá a pena cuidar de algo negligenciado até agora, uma estratégia de crescimento e de modernização da economia brasileira.
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