sexta-feira, 17 de maio de 2019

*José de Souza Martins: Pesadelo kafkiano

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Como em "A Metamorfose", de Kafka, amanhecemos como o estranho ser que não somos

A cultura de uma escolaridade simples foi o espetáculo, nas últimas semanas, nas falas de membros do governo, que a expressaram em manifestações sobre diferentes temas da educação e da ciência. O ministro da Educação considerou-se vítima de um processo como o de kafta (churrasquinho árabe).

Provavelmente, quis dizer "O Processo", livro de Franz Kafka, escritor tcheco, autor de obras emblemáticas da literatura do absurdo. Como em "A Metamorfose", desse autor, amanhecemos, no dia 1º de janeiro, como o estranho ser que não somos. Esse é nosso pesadelo kafkiano.

O mesmo governo que sataniza a universidade pública tem um ministro da Economia, que foi bolsista do CNPq, cuja ascensão ao poder coincidiu com extemporâneas chamadas de reportagem de TV sobre a Universidade de Chicago. Onde ele fez cursos de pós-graduação depois de uma graduação na UFMG, universidade pública e gratuita. Os Prêmios Nobel de Chicago foram ressaltados. Nas boas universidades, porém, é a nota do próprio aluno, e não a nota dos outros, que diz qual é sua competência.

Faz lembrar Thorstein Veblen, em seu "A Teoria da Classe Ociosa", e sua tese sobre prestígio vicário que decorre da dependência em relação a quem tem prestígio próprio. Aqui, competência não é vicária: ou se tem ou não se tem. O país está à espera da comprovação de que a economia do ministro resolverá nossas questões sociais para criar mercado e resolver nossas questões econômicas.

O vistoso talento se confirmará se o problema gravíssimo do desemprego for resolvido, apesar das medidas draconianas que vêm por aí e da falta de políticas sociais. E se os graves problemas nacionais decorrentes de ignorância e de impróprias políticas de educação forem resolvidos como passo decisivo para a integração social dos banidos da modernização e do crescimento econômico rentista.

No capítulo da obsessão pelo diploma e seu simbolismo e a pouca preocupação com o conteúdo do que o diploma representa, temos fatos melancólicos. Quando era ministro da Educação da ditadura, o coronel Jarbas Passarinho foi à operária Osasco (SP) participar de uma cerimônia de diplomação de alunos do curso de alfabetização de adultos do Mobral. Que, aliás, adotava o mesmo método de Paulo Freire, hoje satanizado pelo governo, que não sabe quem ele foi, mas dele tem raiva. Para espanto de um jornalista, o diploma dizia que "Fulano de Tal não está alfabetizado". Diploma de analfabeto, mas diploma é diploma. Diz algo, ainda que nem sempre diga tudo.

Idolatrar o diploma, e não o conhecimento, é pluripartidário. Lula, um dos políticos brasileiros mais inteligentes, apesar de não ter a escolaridade que gostaria, frequentes vezes demonstra sua frustração pela falta de diplomas. Emocionou-se ao receber da Justiça Eleitoral o diploma de presidente da República, mais do que na posse.

Petistas destacaram os diplomas de doutor honoris causa que ele recebeu no Brasil e no exterior. Um deles chegou a comparar o número de diplomas que recebera com os recebidos por Fernando Henrique Cardoso. Destacou que Lula tinha mais diplomas. Mas não disse que os de FHC não eram só os honoríficos. Eram sobretudo os da competência científica e das teses defendidas. Lula gosta de depreciar, sem motivo, os títulos acadêmicos. De outro modo, é o que faz o governo de agora. Vários de seus sábios chegaram ao poder porque passaram por curso americano de ciência oculta de uma nota só.

Mais que a idolatria do diploma vazio, ameaça a sanidade política do país o desapreço pela ciência e pelos méritos da ciência brasileira que vem da boca do governante. O governo deprecia a filosofia e a sociologia, o que mostra ignorância, e não sabedoria.

Em deplorável afirmação do presidente da República, na Universidade Mackenzie, ao louvar a pesquisa naquela universidade sobre o grafeno, desinformado, declarou que a universidade pública brasileira não faz pesquisa científica. Emitiu juízo sobre o que desconhece.

O projeto do Mackenzie tem como parceira decisiva a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), instituição que recebe 1% da arrecadação estadual para apoio a projetos de pesquisa e concessão de bolsas de estudo para formação de novos cientistas. É ela governada por cientistas vinculados sobretudo a universidades públicas, que apoia pesquisas principalmente nelas e também nas empresas, em todos os campos do conhecimento. O que é próprio das instituições de fomento da educação científica e da ciência.

O projeto do grafeno só foi viável com recursos da Fapesp. Ignorar esse fato é ignorar muito mais. Só São Paulo, sobretudo nas universidades públicas, produz mais da metade da pesquisa científica do país.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).

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