- Folha de S. Paulo
Ao elogiar MC Reaça, Bolsonaro revela o símbolo do ethos do atual governo
Não faltam artistas brasileiros dignos de homenagem em 2019. Chico Buarque ganhou o Prêmio Camões; dois filmes brasileiros receberam premiação em Cannes. Do lado das perdas, neste 2019 que nem chegou à metade já faleceram a atriz Bibi Ferreira, o diretor de teatro Antunes Filho, o ator Caio Junqueira, o escritor João Carlos Marinho, a cantora Beth Carvalho, entre tantos outros que mereceriam lembrança. Nosso presidente, contudo, não parece ter dado muita bola a nenhum desses.
Quando decidiu espontaneamente homenagear um artista recém-falecido em seu Twitter (lembrem-se que este é um meio preferencial de comunicação da Presidência), o escolhido foi Tales Volpi, mais conhecido como MC Reaça, que cometeu suicídio neste sábado. Segundo o presidente, MC Reaça era alguém com o “sonho de mudar o país”, dotado de “grande talento” e que “será lembrado pelo dom, pela humildade e por seu amor pelo Brasil”. Ao presidente, juntaram-se homenagens dos filhos Carlos e Eduardo, bem como do perfil de apoio ao governo “Isentões”, segundo o qual “Tales era um dos nossos! Um forte combatente na luta pela verdade”.
Afinal, ao que o “grande talento” de MC Reaça se prestara? Qual o seu exemplo admirável de patriotismo? Seus feitos se resumem a um só: ter composto o funk de propaganda eleitoral “Proibidão Bolsonaro”, que fez sucesso em passeatas a favor do candidato.
A letra é basicamente uma sequência de insultos e provocações a inimigos de Bolsonaro. Nada é construído ou proposto; há apenas ódio e ressentimento: a políticos de esquerda, intelectuais, ao feminismo, à suposta degeneração moral da juventude, etc. O ato de votar em Bolsonaro se transformava num ato de violência redentora, uma vingança imaginária, um insulto jubiloso contra todos esses perigos. “Dou pra CUT pão com mortadela/ E pras feministas, ração na tigela/ As mina de direita, são as top mais bela/ Enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela”. Eis o talento a que Bolsonaro se referia.
Em áreas importantes do governo, a mesma lógica desse funk parece operar. Não há, por exemplo, uma proposta clara para a educação. Mas sobra ressentimento contra um fantasma do comunismo que dominaria as universidades. É uma política puramente da destruição. O corte de verbas não é sentido como uma dura imposição orçamentária, mas celebrado como a desforra contra um sistema que promove “balbúrdia”. O Brasil paga a conta de tantos “talentos” que agora se vingam por jamais terem recebido o reconhecimento que julgavam merecer.
As circunstâncias da morte de MC Reaça tornam a homenagem ainda mais curiosa. Aparentemente (o caso ainda está sendo apurado), Volpi, que era casado, espancara sua amante —possivelmente ao descobrir que ela estava grávida—, deixando-a em sério risco de vida. Depois disso, desesperado, se matou.
Nem passa pela minha cabeça que o Presidente compactue com atos como a agressão a mulheres. A homenagem foi feita, ademais, antes que as circunstâncias fossem conhecidas. Mas fica mais esse paralelo com a realidade: sob a retórica agressiva de um suposto patriotismo e da regeneração moral da sociedade, fecha-se os olhos para práticas monstruosas.
A escolha do homenageado revela-se assim um símbolo do ethos do atual governo e de seus apoiadores mais aguerridos. Propaganda, ódio, ressentimento, ideologia e agressão: quem negará que a homenagem foi bem escolhida?
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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