- O Estado de S. Paulo
De todas as perversidades perpetradas por J. Edgar Hoover, nenhuma me enfureceu mais que o seu obstinado e mortífero acosso à atriz Jean Seberg
Vocês acompanharam. Primeiro, ele disse que o único fato grave seria a invasão dos celulares dos procuradores por um hacker. Sobre o conteúdo, silêncio. Depois, sem lograr materializar um bode expiatório nem encontrar respaldo legal para punir o mensageiro, alegou que as mensagens vazadas pelo InterceptBr seriam falsas ou adulteradas. E ainda que fossem verdadeiras, concedeu, nada tinham de ilegais.
Atolado em negaças e contradições, apelou para o seu último shazam: a teoria conspiratória segundo a qual imprensa e oposição se mancomunaram para favorecer a corrupção ou mesmo arruinar a Lava Jato.
Apelação bandida. Quero crer que só quem tem o rabo preso conspira contra a Lava Jato – e, por incrível que pareça, também contra os vazamentos, agora divulgados em cadeia. O que prevalece é a intenção de preservar a integridade da Lava Jato, apagar-lhe a imagem de uma operação judicial que parece ter virado uma holding ou uma sociedade secreta, para não usar correlatos mais próximos da esfera criminal e da avacalhação.
Assim como as denúncias contra o Banco Ambrosiano não destruíram o Vaticano, nem as pesadas críticas ao FBI e seu czar J. Edgar Hoover afetaram as atividades da PF americana, não há por que recear que imprensa e oposição possam – ou sequer pretendam – destruir a Lava Jato.
As únicas ameaças de extermínio feitas ou esboçadas até agora tiveram como alvo justamente o InterceptBr, contra o qual, porém, nossa Justiça nada pode fazer – e, se tentar fazê-lo, terá de explicar por que até hoje não conseguiu prender quem mandou matar Marielle nem desvendar o paradeiro do Queiroz.
Ora, direis, que Hoover, o lúcifer do FBI, desbaratou o gangsterismo na América. Confere. E que nem por isso ele foi alçado ao posto de secretário de Justiça, o ministro da Justiça de lá. Confere de novo.
Hoover só agia nas sombras. Liquidou Dillinger, prendeu Al Capone, perseguiu uma legião de foras da lei e espiões nazistas, mas suas exorbitâncias e patifarias, expostas à exaustão pela imprensa e políticos, o difamaram até a eternidade.
Ninguém mandou mais na América do que ele entre 1924 e 1972; mais tempo no poder que Stalin. Atravessou oito presidentes da República, 32 Congressos e 16 secretários de Justiça, 48 anos à frente de um império pessoal, a confundir segurança nacional com a segurança de sua própria reputação, a usar os G-men (agentes policiais do governo) sob seu comando para perseguir desafetos, falsos inimigos e quem mais sua paranoia anticomunista julgasse conspirar contra o “mundo livre”.
Hoover pressionou e chantageou presidentes, congressistas, celebridades, intelectuais, grampeou telefones, xeretou correspondências, franqueou os arquivos do Bureau ao macarthismo, até olheiros disfarçados de mordomos e jardineiros infiltrou em residências consideradas suspeitas. “Uma Gestapo”, na avaliação isentérrima do presidente Harry Truman.
De todas as perversidades perpetradas pelo ogro de Washington, com a ajuda de Clyde Tolson, misto de capacho, alter ego e bem-querer, nenhuma me enfureceu mais que o seu obstinado e mortífero acosso à atriz Jean Seberg.
Por mais volúvel que eu seja ou tenha sido, no meu altar de deusas cinematográficas apenas quatro nunca perderam a estabilidade. Esther Williams foi a primeira, rabicho infantil; sucedida por Ava Gardner e Marilyn Monroe, feitiços tão juvenis quanto Jean Seberg, coup de foudre instantâneo ao vê-la numa foto da revista Cinelândia, circa 1957, uma mocinha do Meio-Oeste (Marshalltown, Iowa) fazendo testes para seu primeiro filme, o desastroso Santa Joana, dirigido por Otto Preminger.
Aquele cabelinho curto, aquele rosto angelical, aquele olhar enigmático e maroto, aquela nuca – aquela nuca! – me fizeram esquecer Falconetti, Ingrid Bergman e todas as Joana D’Arc conhecidas e por conhecer. A paixão se consolidou quando ela virou Cécile (Bom dia, Tristeza) e chegou ao êxtase, de resto coletivo e universal, quando a vimos descer o Champs-Elysées oferecendo aos passantes o International Herald Tribune, em Acossado.
Primeira musa da Nouvelle Vague, Seberg apareceu em 36 filmes, a maioria medíocre. François Truffaut esperou o máximo que pôde para tê-la como Julie, a estrela de Noite Americana. Embora tenha vivido e filmado anos a fio na Europa, sua melhor performance dramática foi num filme americano, Lilith, de Robert Rossen.
Muito sensível e inteligente, politizou-se, fácil e intensamente, na França dos anos 1960-70. Fez doações em dinheiro a vários grupos envolvidos na campanha pelos direitos civis nos Estados Unidos. Ao colaborar financeiramente com o Partido dos Panteras Negras, entrou no radar do FBI, que passou a investigar até sua vida amorosa, por intermédio do Cointelpro, programa secreto de contrainteligência criado por Hoover para uma série de operações ilegais e clandestinas, mutreta há tempos reconhecida como terrorismo de Estado conduzido em nome da Segurança Nacional.
No início dos anos 1970, o FBI espalhou o boato de que ela estava grávida não do marido, o escritor Romain Gary, mas do líder black panther Raymond Hewitt. Plantado na coluna de Joyce Harber, do Los Angeles Times, e na Newsweek, destruiu o casamento da atriz e abalou seus nervos para sempre. O bebê, uma menina, nasceu prematuro, em 23 de agosto de 1973, e morreu dois dias depois. No funeral, em Marshalltown, Seberg fez questão de manter o caixão aberto para que todos verificassem que sua filha era branca, filha de Romain.
Após algumas tentativas de suicídio, em Paris, Seberg desapareceu na noite de 30 de agosto de 1979. Seu corpo foi encontrado nove dias depois, enrolado num cobertor no banco traseiro do seu Renault, ao lado de um frasco vazio de barbitúricos.
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