- Folha de S. Paulo
Eles nunca foram tantos como no Brasil atual, em que os mais ricos ganham e os mais pobres perdem renda
O escritor João Antônio (1937-1996) andava na rua com o ouvido espichado para a fala do povo. Um hábito adquirido em São Paulo, sua cidade natal, e que trouxe para o Rio, onde se fez carioca de Copacabana. Ao capturar uma gíria, uma expressão, um xingamento, anotava no papel do maço de cigarros Plaza --"qualquer boteco é lugar para escrever quando se carrega a gana de transmitir", costumava dizer-- para depois passar a limpo num caderno de telefones com sua letra miúda. Em vez de números, definições do que foi pescado ao sabor das circunstâncias. Um exemplo do dicionário das calçadas: "Água (aquela): situação ruim".
Na novela "Paulinho Perna Torta", essa coleta vira literatura num chorrilho de sinônimos para dinheiro: "o carvão, o mocó, a gordura, o maldito, o tutu, o poroló, o mango, o vento, a granuncha, a seda, a gaita, o capim, o cobre, a manteiga".
Entre todas, no entanto, João Antônio tinha predileção por determinada palavra, que ele aplicava a seus personagens marginalizados. São os "merdunchos", que vivem naquela água e se viram justamente para conseguir algum dinheiro.
Eles nunca foram tantos como no Brasil atual. A desigualdade no país, que já é um dos mais desiguais do mundo, só faz crescer. Pesquisa recente divulgada pelo IBGE mostra que, por qualquer medida, no último ano os mais ricos ganharam e os mais pobres perderam renda. O efeito da crise econômica no mercado de trabalho conseguiu até que os desempregados mudassem de nome --agora são chamados de empreendedores.
No conto "Três Cunhadas - Natal 1960", um personagem de João Antônio mal consegue andar na rua da Carioca de tanta gente: "A gritaria dos camelôs parece um comando. E os óculos franceses vieram de Cascadura, a seda do Japão saiu de algum muquinfo das beiradas da Central". Experimente passar lá hoje. Não tem ninguém.
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