terça-feira, 22 de outubro de 2019

Joel Pinheiro da Fonseca - Não é só o Chile

- Folha de S. Paulo

Todo país tem pretextos para extravasar um desejo de revolta latente

O Chile não é um candidato óbvio para protestos violentos e saques em larga escala. É o IDH mais alto da América Latina e a economia mais rica. A desigualdade é alta para padrões OCDE, mas não aberrante para padrões do continente. Segundo a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), está abaixo da média latino-americana e vem caindo ao longo dos anos.

O Chile tem as melhores notas do Pisa (exame que avalia estudantes de diversos países) na América Latina. Tem estabilidade política, democracia sólida com alternância de poder e boa forma econômica. No quesito corrupção, está entre as melhores pontuações no ranking da Transparência Internacional no continente. Perde apenas para o Uruguai.

Há problemas ligados à oferta de água? Sim, mas a cobertura de saneamento básico chega a quase 100% da população. Compare isso às maravilhas do sistema estatal brasileiro, em que metade das pessoas não tem coleta de esgoto.

Muito se fala da crueldade da aposentadoria chilena, outra possível causa da revolta popular. Por coincidência, na semana passada tivemos a publicação do “Melbourne Mercer Global Pensions Index 2019”, um ranking comparativo dos sistemas previdenciários de dezenas de países. Nele, a nota da previdência chilena é B (superior ao C brasileiro), num conceito que inclui diversos componentes. Quando avaliado apenas pelo componente social, a previdência chilena realmente deixa a desejar (perde, inclusive, para o Brasil). Mesmo nesse quesito social, contudo, o Chile está próximo da Colômbia e acima de países como México e Argentina. Não é um ponto negativo fora da curva.

Ou seja: é claro que a população tem suas insatisfações, mas é um erro achar que protestos em larga escala indiquem algo sobre o “real” estado da sociedade. Cidadãos tocando fogo em lojas e trens não são porta-vozes de uma análise racional da realidade, mas apenas de seus próprios sentimentos radicalizados. E são esses que precisamos entender. Todo país tem problemas que podem servir como pretexto para extravasar um desejo de revolta anterior e latente: se é por 20 centavos ou 30 pesos, tanto faz.

Pois protestos em larga escala vêm sacudindo o mundo desde 2008 —Tea Party e Occupy Wall Street nos EUA, Primavera Árabe, junho de 2013 e caminhoneiros no Brasil, Coletes Amarelos na França etc. Com eles, cresce também o apelo do radicalismo populista, seja de esquerda ou de direita. Cada protesto tem suas especificidades, mas se trata de um fenômeno global. Do Chile liberal à França assistencialista, ninguém está a salvo.

Um fator novo, que afeta o mundo inteiro e nos ajuda a explicar a nova era de instabilidade social e tendência ao populismo são as redes sociais. Graças a elas, podemos formar grupos de pessoas que pensam igual e consomem apenas informações destinadas a reforçar suas crenças, desqualificando de saída tudo o que contradisser os desejos do grupo. Não há mais fontes partilhadas, em que todos acreditem. Nesse caldo polarizante, a confiança nas instituições cai a zero, e a negação de tudo que aí está, acoplada por vezes à revolta violenta, fica parecendo uma resposta natural. Devemos ver mais revoltas no futuro.

Estamos apenas começando a entender essa dinâmica, mas parece claro que, para evitar mais violência e populismo, será necessário, além da eterna preocupação com os indicadores, sejam eles sociais, econômicos ou ambientais, pensar também na dieta informacional da população e no grau de confiança que as pessoas têm umas pelas outras e pelas regras básicas da sociedade em que vivem. No Chile, no Brasil, na França ou no Líbano, estamos no mesmo barco.

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