- O Globo
No país que era apontado como modelo, população saiu furiosamente às ruas. Entender o Chile é parte do esforço de proteger a democracia no continente
As ruas chilenas ainda não estão em paz, mas já é possível entender parte da eclosão e o balanço dos estragos. Houve dias em que quatro milhões de pessoas estavam em passeatas ao mesmo tempo, em todo o país. O Chile tem 17 milhões de habitantes. Isso seria equivalente a ter 49 milhões de brasileiros em manifestações. Foram para as ruas convocados pelas redes, sem haver liderança clara. A perda de patrimônio em infraestrutura pública e em bens privados é equivalente à destruição causada pelo terremoto de 2010.
Entender o Chile é parte do esforço de compreender o mundo contemporâneo. As redes de indignação e esperança, como define Manuel Castells, se formam anárquicas. Pesquisas de opinião do Instituto Cadem monitoram o sentimento popular e mostram que a desaprovação do governo de direita de Sebastián Piñera está em 77%. Melhorou. Já foi 82%. Mas Michelle Bachelet, de esquerda, chegou a ser rejeitada por 75% no final de 2016. Uma pesquisa feita entre os jovens dos grupos mais radicais, que teriam participado dos atos de vandalismo, mostrou que o ponto em comum entre eles é a solidão. O indivíduo está só nestes tempos líquidos, como diria o sociólogo Zygmunt Bauman.
De concreto, houve uma falha geral dos políticos em perceber o acúmulo de frustrações. A raiva é contra as magras aposentadorias, o preço dos medicamentos, as falhas dos sistemas de saúde e de transportes, o custo do crédito estudantil tomado pelas famílias para que os filhos fizessem curso superior, o que eles chamam de CAE, Crédito com Aval do Estado. O estopim foi o aumento da passagem do metrô.
O país era elogiado como exemplo do sucesso liberal. A reforma da previdência, feita pela ditadura, havia supostamente eliminado o déficit. A verdade é que o sistema de capitalização foi se tornando insustentável, mas os governos de direita e de esquerda não o corrigiram pelos vetos recíprocos.
Quando a esquerda tentou mudar, a direita bloqueou, quando a direita propôs, a esquerda impediu. Funciona assim: O equivalente a 10% dos salários dos trabalhadores foi sendo colocado em contas individuais de instituições privadas, as Associações de Fundo de Pensão. Do total poupado, 9 pontos percentuais são contribuição do trabalhador e apenas 1 é do empregador. Ao se aposentar, o trabalhador passa a receber parcelas mensais dessa poupança.
Não previram que a população iria viver muito mais. Não aumentaram a parcela empresarial. Não havia aporte governamental. O resultado foi que uma população que melhorou de vida, que se sente majoritariamente de classe média, começou a receber aposentadorias menores que o salário mínimo. Os filhos tiveram que sustentar os pais e perderam renda disponível. A crise de 2008 aumentou a taxa de desemprego. Quem ficou desempregado parou de contribuir para a sua previdência, agravando o problema. Ainda há 650 mil jovens que nem estudam nem trabalham, um número enorme para a população chilena.
O presidente Sebastián Piñera disse inicialmente que os manifestantes eram “inimigos” e autorizou a repressão. Nela 24 morreram e 3449 ficaram feridos. Ele recuou e propôs reforçar o “pilar social” em que empresas e governo contribuirão para a previdência. Convocou para 16 de abril o começo do processo para ter nova constituição. A atual foi muito reformada mas tem um pecado original: foi feita pelo ditador Augusto Pinochet.
Quais são os sentimentos do chileno? Uma pesquisa mostrou que são preocupação (34%), raiva (15%), tristeza (13%), medo e irritação, 7% cada um. Do lado positivo, apenas 13% sentem esperança, 2%, tranquilidade, 2%, alegria, e 1%, paz. Porém quando olham para o futuro e são perguntados o que será o Chile quando superar essa crise, 74% acreditam em um país melhor.
Piñera tem feito concessões que estão mudando seu programa de governo. Isso contraria quem votou nele. O sistema político começa a convergir para uma pauta comum. Mas as ruas ainda estão bravas. Em que instituições os chilenos confiam? A PDI, polícia de investigação, tem o primeiro lugar com 57% de aprovação, nos outros três lugares estão Marinha, Força Aérea, Exército. Depois vem Banco Central e Carabineros. O de menor aprovação é o Congresso, que tem apenas 11%, os tribunais de justiça têm 18%. Entender o caso chileno é parte fundamental da luta para proteger a democracia no continente.
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