- O Globo
Democracia está posta em xeque também pela desigualdade econômica exacerbada em países como o nosso
A crise do Chile, ainda em progresso, foi surpreendente não apenas para as autoridades do país, mas para todos aqueles que apontavam a experiência democrática chilena como exemplar para o desenvolvimento econômico e social de seus pares regionais. Líder entre seus iguais, o Chile é o único membro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) da região, que reúne os países democráticos mais desenvolvidos do mundo, situação a que Brasil e Argentina aspiram.
A inflação chilena está em torno de 2%, abaixo da meta prevista, a desigualdade de renda vem caindo desde o retorno à democracia em 1990, com o índice de Gini, que a mede, saindo de 0, 57 para 0,46 em 2017. O do Brasil ficou em 0,62 em março deste ano. Como o número mais próximo de 1 representa maior desigualdade, é possível notar que o Chile, embora seja muito desigual, mais que a Argentina e Uruguai, por exemplo, não é o pior da região.
O embaixador do Chile no Brasil, Fernando Schmidt, constata, no entanto, que bons indicadores econômicos já não são suficientes para os chilenos, que querem uma distribuição melhor da renda nacional. Não há, portanto, uma explicação única para o que está acontecendo no Chile, mas um conjunto de fatores que provoca o que o psicanalista Joel Birman classifica de crise psíquica causada pelo neoliberalismo econômico, categoria em que inclui até mesmo a sociedade chinesa.
As pessoas que não conseguem produzir dentro das exigências capitalistas se sentem alijadas socialmente. O modelo de capitalização previdenciária, que o ministro da Economia Paulo Guedes queria reproduzir no país, é uma das causas de insegurança quanto ao futuro que no momento atual chegou a um clímax, pois os baby boomers, geração nascida depois da Segunda Guerra Mundial, começam a se aposentar com o sistema privado de previdência.
Paradoxalmente, a saúde financeira do país e a queda dos juros criaram problemas novos. A longevidade, conseqüência do sucesso do desenvolvimento, provoca uma lacuna entre o que se consegue poupar durante o período ativo e o que se precisa para viver mais 20 anos depois de aposentar.
A taxa de desemprego é de cerca de 7%, mas, à semelhança nossa, cerca de 1/3 da força de trabalho é de empreendedores ou trabalha na informalidade. Mesmo entre os trabalhadores formais, muitos têm empregos intermitentes. E o desemprego entre os jovens e as mulheres é dos mais altos entre os países da OCDE.
Birman diz que o “empresário de si próprio” é uma característica da sociedade neoliberal, que exige produtividade do cidadão em troca de quase nenhuma segurança social. O embaixador chileno Fernando Schmidt chama a atenção para esse fator na crise chilena, lembrando que o governo já reconheceu falhas nos sistemas de proteção social, que serão revistos, e nos serviços públicos.
São os mesmos problemas que tivemos aqui, a partir das manifestações de 2013, ocasionadas também por um aumento do preço dos transportes públicos. Uma faísca que desencadeou manifestações das insatisfações latentes da população. Essa é uma situação social comum ao mundo atual.
Com o surgimento do “capitalismo de Estado”, capitaneado pela China, a relação direta entre democracia e capitalismo já não é mais uma variável tão absoluta quanto parecia nos anos 80 e 90 do século passado. A democracia está posta em xeque também pela desigualdade econômica exacerbada em países como o nosso. O relatório de 2018 do Latinobarômetro mostra que a percepção de retrocesso na região é a mais alta desde que a pesquisa começou a ser feita, em 1995.
Apenas 20% dos latino-americanos acreditam que seus países estão progredindo, o que leva ao crescimento do número de cidadãos que se declaram indiferentes ao tipo de regime que governa seus países, a maior fonte que alimenta o surgimento de populismos.
Por outro lado, pesquisa, apresentada no Instituto Fernando Henrique Cardoso pelo francês Dominique Reynié, da Fundação para a Inovação Política (Fondapol), mostrou que a democracia é o regime preferido em 42 países pesquisados na sondagem internacional que ouviu 35.000 pessoas no estudo “Democracias sob Tensão”.
Mas é preciso crescimento econômico com inclusão social. (Amanhã, a força da democracia)
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