Falta de decoro – Editorial | O Estado de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro faltou com o decoro necessário para o exercício do cargo ao reagir raivosamente ao noticiário sobre as suspeitas envolvendo seu filho Flávio.
Na saída do Palácio da Alvorada, Bolsonaro, sob aplausos dos simpatizantes que ali estavam, ofendeu jornalistas que o questionaram, acusou sem provas o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, de manipular o caso para prejudicá-lo e insinuou que o juiz do processo tem interesse em fazer as vontades do governador, já que uma filha do magistrado é funcionária do Estado.
A reação truculenta do presidente surpreendeu mesmo aqueles que acompanharam sua trajetória política até aqui e testemunharam seu destempero em diversas ocasiões.
É fato que Bolsonaro transformou sua retórica inflamada e muitas vezes ofensiva em uma marca pessoal, vista por seus apoiadores como sinal de sua “autenticidade” como político, destacando-se dos demais por ter a coragem de dizer em voz alta, em público, o que os demais não sussurram nem quando estão sozinhos. Foi dessa maneira que Bolsonaro construiu a imagem de um outsider político, a despeito do fato de estar na política há três décadas.
Também é fato que Bolsonaro, desde que assumiu a Presidência, costuma recorrer à agressividade sempre que precisa mobilizar a militância bolsonarista para intimidar adversários políticos. A esta altura está claro que Bolsonaro não conhece outras formas de fazer política.
No entanto, o que se testemunhou ontem à saída do Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente da República, foi muito além do tolerável até para o grosseiro padrão do bolsonarismo. Já seria indecoroso mesmo se Bolsonaro fosse apenas um deputado federal do baixo clero; como presidente da República, tal comportamento envergonha os cidadãos e enxovalha o País.
Nada justifica que o presidente tenha se dirigido a jornalistas da forma como fez, com ofensas ginasianas a respeito da sexualidade de um repórter e do comportamento da mãe de outro. Que Bolsonaro tem dificuldades em lidar com a imprensa já está claro a esta altura – e não é o primeiro nem, provavelmente, será o último presidente a ter rusgas com jornalistas e veículos. Tampouco é segredo que Bolsonaro antagoniza a imprensa com o objetivo de desmoralizar o noticiário que lhe é desfavorável – e isso também não é novidade no mundo da política. Desta vez, porém, não há cálculo político que desculpe ou relativize o tom de Bolsonaro, próprio de arruaceiros que chamam desafetos para uma briga de rua.
Ao agir dessa maneira, Bolsonaro não apenas se apequena como presidente, como dá a entender que está acuado diante das suspeitas que recaem sobre seu filho Flávio – o senador teria se beneficiado de esquema de desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro quando era deputado estadual no Rio de Janeiro. O caso todo ainda tem muitos pontos obscuros e é preciso aguardar que a polícia e o Ministério Público concluam seu trabalho e os tribunais punam quem deve ser punido, quando for a hora. No momento, o interesse no caso é basicamente político, com potencial para prejudicar o presidente – razão pela qual Bolsonaro faria bem se tratasse o noticiário com a maior discrição possível, pois é preciso preservar a Presidência, da qual depende a governabilidade do País.
Mas o presidente parece simplesmente incapaz de se comportar de acordo com o cargo que ocupa e de compreender que esses maus modos, ao criar atritos e cizânias, podem prejudicar a recuperação do País justamente no momento em que se verificam bons sinais na economia.
O decoro no exercício da Presidência não é um capricho; é, antes, a consciência da responsabilidade – e dos limites – de quem conduz os rumos da nação, como chefe de Estado e de governo. Não é qualquer um que pode ocupar a cadeira presidencial, por mais que o atual presidente queira apresentar-se como um homem comum. A deferência ao cargo de presidente da República é, antes de mais nada, deferência à própria noção de República, em que todos devem se submeter à lei – e mesmo a mais alta autoridade do País não pode fazer ou dizer o que lhe dá na cabeça. Honestidade e compostura devem emanar da cadeira presidencial.
Era digital impõe debate sobre novo imposto – Editorial | O Globo
Paulo Guedes propõe gravame confundido com a CPMF, mas que seria adequado aos novos tempos
Lançada em 1993 como “imposto”, pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, no governo Itamar Franco, a CPMF, convertida em “contribuição” no ano seguinte pelo já presidente FH — maneira esperta de evitar o compartilhamento da arrecadação com os estados —, jamais deixou de alimentar debates e divergências.
Todo governo gosta de um imposto deste tipo. Não custa praticamente nada operá-lo, e oferece elevada arrecadação, por incidir sobre qualquer movimentação financeira.
Como todo ministro da Economia, Paulo Guedes assumiu com uma CPMF na cabeça. Levou para a Receita Federal Marcos Cintra, entusiasta do imposto único. Terminou demitido por Guedes, porque defendeu abertamente a volta da CPMF, contra a vontade do presidente Bolsonaro, dos políticos e da sociedade. O próprio ministro chegou a antecipar alíquotas. Mas foi poupado.
Apesar de tudo, na longa entrevista que concedeu à “Central GloboNews”, quarta à noite, Guedes defendeu um imposto sobre “transações”. De alíquota baixa e com ampla base de taxação. O dinheiro serviria para compensar o corte do alto custo trabalhista, de fato grande incentivo ao desemprego e, em especial, à falta de empregos formais.
O ministro garante não ser uma CPMF, por mais que se pareça com ela. Paulo Guedes argumenta, a favor desse imposto sobre “transações”, com as mudanças radicais por que passam as sociedades e os sistemas de produção.
É fato que governos se preocupam crescentemente com a “digitalização” de tudo. A Europa há tempos discute taxar diretamente as grandes plataformas digitais: Google, Amazon, Facebook e Apple, chamados pelo acrônimo de Gafa. Dirigentes europeus reclamam das elevadas taxas de lucro que as empresas obtêm no continente, e veem nelas uma oportunidade de receita.
É verdade que as bases de incidência dos impostos da Era Industrial estão se digitalizando e escapando dos Fiscos, ou desaparecendo simplesmente. Os próprios bancos, como sempre os conhecemos, na função de intermediários, estão sob risco. Operações já passam à margem deles.
A mudança do caráter do trabalho e do emprego está corroendo o sistema de financiamento do INSS, assentado no emprego formal clássico, que se encontra em processo de mudança. Por tudo isso, há um debate que precisa ser travado: a estrutura tributária desses novos tempos.
O imposto sobre o qual pensa Paulo Guedes não pode repetir, por exemplo, a perniciosa cumulatividade da CPMF, que faz com que pequenas alíquotas na aparência escondam aumentos na carga tributária que prejudicam toda a economia. As exportações, por exemplo. Também precisa evitar a iniquidade de se taxarem ricos e pobres da mesma forma, como se tivessem a mesma renda. Outro ponto: não pode haver recuos no corte de gastos, com redução de privilégios de corporações, que abocanham boa parte da Previdência, um trabalho apenas iniciado nesta reforma.
O plano Fernández – Editorial | Folha de S. Paulo
Pacote argentino busca fôlego político, mas não soluciona restrições econômicas
Avançou no Legislativo argentino o pacote com as primeiras medidas econômicas do novo governo do país vizinho. A coletânea de iniciativas se concentra em alta de impostos e mais gastos públicos para a população de baixa renda.
O programa inclui um aumento para até 33% na taxação das exportações de soja e até 15% nos casos de outras culturas. Também elevam-se os tributos sobre patrimônio e institui-se uma taxa de 30% sobre compras de moeda estrangeira. A esperada redução no gravame de empresas, de 30% para 25%, foi abandonada.
Em conjunto, as medidas buscam arrecadar algo entre 1% e 1,5% do Produto Interno Bruto (como comparação, a extinta CPMF arrecadava o equivalente a 1,4% do PIB brasileiro). Dessa maneira, a gestão de Alberto Fernández pretende financiar novas despesas sociais.
Entre elas, conceder cartões de débito para subsidiar alimentação de 4 milhões de famílias pobres. Há também um conjunto de políticas de renda ainda sendo formuladas.
Além do congelamento de preços de energia, o governo propôs a suspensão por 180 dias da fórmula de reajuste das aposentadorias, baseada na inflação passada. Com isso, adquire poder discricionário —mas com potencial passivo jurídico— para conceder ganhos aos menores benefícios, em detrimento dos maiores.
Conclui as medidas a autorização para o governo sacar até US$ 4,5 bilhões das reservas do Banco Central, com o propósito de fazer frente aos vencimentos de dívidas nos próximos meses enquanto negocia um alívio com os credores.
Os primeiros passos de Fernández mostram que o objetivo é ganhar algum tempo com a base de apoio peronista por meio de ações sociais, mas ao mesmo tempo minimizar o risco de mais inflação. Daí a escolha por aumento de impostos, de modo a manter o déficit primário (excluindo juros) do governo em torno de 1% do PIB.
A impressão que se busca transmitir aos credores é de alguma responsabilidade inicial, até que se possa avançar numa pauta mais permanente. Não será fácil, contudo. A economia permanece em crise —espera-se queda do PIB próxima a 2% neste ano— e dificilmente ganhará ímpeto relevante.
Mesmo com mais gastos direcionados aos mais pobres, a taxação das exportações impõe um pesado custo para o único setor competitivo. A negociação com os credores deve ser dura.
Como de hábito na Argentina, o governo terá de lidar simultaneamente com escassez de dólares, conflito distributivo expresso na fragilidade das contas públicas e alta inflação. O plano inicial ainda não deixa claro qual será a estratégia para superar essas restrições.
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