- Revista Época
Já neste fim de década, “liberdade” é palavra perigosa, tempos de intolerância, de conservadorismo extremado, de nacionalismo escancarado, de injustiça
No dia 25 de dezembro de 1989, há quase 30 anos, Berlim recebeu Schiller, Beethoven e Leonard Bernstein. O “Concerto pela Liberdade” marcou não apenas a queda do Muro de Berlim, mas a inauguração de uma nova era. Para a Alemanha, tinha início a união, com a demolição do muro que dividira o país após a Segunda Guerra Mundial. Para o mundo, a sinfonia sublime de Beethoven seria o hino da União Europeia. O novo tempo tinha início, assim, com Beethoven, o compositor que soube como ninguém revelar a beleza que a humanidade é capaz de produzir, e a contribuição do magnífico Bernstein ao introduzir no poema de Schiller uma singela e brilhante mudança: a substituição da palavra “alegria” pela palavra “liberdade”. Já neste fim de década, “liberdade” é palavra perigosa, tempos de intolerância, de conservadorismo extremado, de nacionalismo escancarado, de injustiça.
Em 1989 Bernstein ofereceu a liberdade ao mundo no poema de Schiller, unindo todos os povos com a celebração de sua inescapável humanidade. Quem não quer liberdade? Liberdade para criar, para se expressar, mas, sobretudo, para garantir a justiça. Não há liberdade onde uma parte da população é oprimida ou impedida de ter as mesmas oportunidades, os mesmos direitos e o mesmo respeito que têm os demais. Não há liberdade onde há injustiça.
Sociedades muito desiguais não são justas, portanto, não são livres. O Brasil é profundamente desigual e inequivocamente iliberal — e isso só é novidade para quem nunca pôs o país diante do espelho, olhou e fez as perguntas difíceis. Como defender um fiscalismo qualquer em nome do “liberalismo” sem tratar das consequências que essas medidas podem ter no aprofundamento da desigualdade? Como ter a ousadia de falar em “volta da confiança com as reformas para retomar o crescimento” quando há dezenas de milhões de desempregados e subempregados no país? Sem contar, é claro, que só fizemos uma reforma nestes quase 12 meses de governo.
Como dar tanta atenção ao mercado quando estamos perdendo mais uma geração para o analfabetismo funcional em matemática, ciências e, claro, leitura? Como deixar escorrer pelas costas de uma sociedade multiétnica as persistentes discriminações de gênero, de raça, de classe social? Se há algo que o Brasil deveria ter aprendido com seus fracassos é que dogmas não respondem a essas perguntas. O modelo formal e rigoroso — modelinho bacana — aprendido na faculdade de economia não responde a essas perguntas. Os arroubos em mídias sociais tampouco. As respostas prontas não respondem a essas perguntas.
O mundo está de pernas para o ar. Perdemos referências que pareciam bem estabelecidas e que foram celebradas no Portão de Brandemburgo naquele Natal de 1989. É certo que àquela altura o entusiasmo com o liberalismo também era cego, mas tal perda de referências não é licença para fazer o que bem se entende — isso a liberdade não permite, já que está entrelaçada com a justiça, a igualdade de todos na aspiração a uma vida livre e o dever de respeitar espaços e modos de vida alheios.
A perda de referências também não é razão para o desespero ou para o niilismo. Não é a primeira vez que a humanidade vê ruir suas referências. A perda de referências é, antes, uma oportunidade. Oportunidade para pensar e debater como entendemos a desigualdade, em que medida os governos são capazes de atenuá-la e se basta pensarmos apenas nessa dimensão daquilo que é um imenso problema nacional e global.
Desigualdade é a disparidade de acesso às oportunidades no ponto de partida. Reduzindo-a a alguns itens do Índice de Desenvolvimento Humano, a desigualdade passa pelo acesso à educação de qualidade, à saúde, ao saneamento, a um emprego que garanta um salário digno. Mas, ainda que resolvidos os problemas do ponto de partida, há muros. Há muros que impedem a mobilidade social por preconceitos, por exemplo. Entre os maiores problemas que o mundo e o Brasil enfrentam nesta virada de década não figura apenas a simples existência desses muros, mas a vontade política, a vontade popular, de torná-los mais sólidos e resistentes. Ou de erguê-los onde haviam deixado de existir — no Canal da Mancha, por exemplo.
Neste mundo em que sobem as barreiras, neste Brasil em que as cabeças se fecham e o campo visual se estreita, há muita necessidade de resgatar a liberdade concebida por Schiller, Beethoven e Bernstein naquele dezembro simplesmente formidável e inesquecível.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
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