terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Carlos Andreazza - Bolsonaro e o déficit da Presidência

- O Globo

O presidente mente como estratégia, para testar o campo, para medir apoios, para aferir o pulso dos seus

Basta de mistificação. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha — o maldito fundão — é lei. A de número 13.487, de 2017. O texto, no artigo 16, é explícito: o “Fundo é constituído por dotações orçamentárias da União em ano eleitoral (...)”

Repito: é lei. Já foi sancionada. Não está em debate. E nada tem a ver com Jair Bolsonaro. É matéria impessoal. Qualquer proposta de orçamento em véspera de ano eleitoral deverá contemplar previsão para aquele fundo. Seria assim — igualzinho — se Fernando Haddad tivesse vencido. Se cabo Daciolo estivesse na Presidência: seria assim. Será assim, novamente, em 2021. Qualquer que fosse (for) o governo precisaria (precisará) incluir destinação de valores para este fim. O governo Bolsonaro o fez. E enviou ao Parlamento.

A discussão ora havida — uma polêmica artificial estúpida, que investe na confusão e escapa do que importa — é sobre o valor dessa dotação; e sobre se o presidente pode ou não vetá-lo. Lembremos... Depois de muita atividade legislativa, e do surgimento influente da ideia de elevar o montante para cerca de R$ 4 bilhões, o Congresso — dobrado pela reação da sociedade — por fim definiu a tunga em pouco mais de R$ 2 bilhões, a mesma quantia prevista pelo governo; ou seja: por Bolsonaro. Ele poderia vetá-la? Sim. Para que não reste dúvida: sim, poderia vetar o valor estabelecido.

A pergunta é outra, contudo: que sentido faria o presidente vetar uma dotação que ele mesmo propusera?

Nenhum. Né? Mas é aí, na ausência mesmo de razão, que começa a enrolação; a vergonhosa manipulação dos fatos e do que versam os códigos pelo presidente e seus bate-paus. Um padrão já mapeado e que se baseia na mentira como método — mentira logo instruída e ministrada via WhatsApp etc. Bolsonaro mente. Quer se desvincular, para efeito de percepção popular, do sistema de que faz parte e — sempre criminalizando a atividade política — empurrar a responsabilidade exclusivamente contra o Parlamento. Foi assim, em grande medida, que erigiu a eficiente farsa de sua persona antiestablishment.

O presidente mente como estratégia, para testar o campo, para medir apoios, para aferir o pulso dos seus. Mentir, desinformar — é como compreende “preparar a opinião pública” para quando, afinal, sancionar a dotação bilionária para o fundão. Bolsonaro precisa enganar — ou tentar — porque um de seus pilares de sustentação mais importantes, aquele (instável) lavajatista, é hostil à estrutura partidária (à democracia representativa) e aos mecanismos públicos de financiamento dessa máquina. Daí por que jogue para sua rede que, se vetasse aquela linha do orçamento, incorreria em crime de responsabilidade — um gatilho para que, segundo sua versão, fosse vítima de um processo de impeachment. Pura balela. Ou teríamos o incrível evento do crime de responsabilidade em decorrência de infração à lei inexistente...

A lógica elementar aterra a cultura da desinformação difundida pelo próprio Bolsonaro: se a lei está para ser sancionada, é claro que pode ser vetada. Se está para ser sancionada, e se pode ser vetada, lei vigente ainda não é. Oh!

Vetar é prerrogativa do presidente. Vetar é opção legítima plenamente assegurada à função de chefe do Executivo; aquele que decide — que precisa decidir — e cujas decisões não raro deságuam em impopularidade. Se, porém, neste caso, dado o histórico de seu discurso contrário ao que representa o tal fundo, vetar — decidir — significa também o risco de ser entendido (pelos seus) como cometendo estelionato eleitoral, e se esse é (e é) um grande dilema (paralisante) para Bolsonaro, um governante que só sabe se comportar como candidato em campanha, eis o que sobra (inclusive aos que não lhe votaram): a expressão de um presidente cujo déficit de Presidência é alarmante.

Eis o que falta: um governante capaz de explicar à população de que maneiras a lei o limita e obriga, e por que, afinal, caímos nessa arapuca de financiamento público de campanha eleitoral. Esse que sempre foi o maior problema; o erro fundamental, o que importa aqui e do qual toda a mistificação corrente deriva: aquela ocasião, ainda em 2015, quando o STF — legislando, jogando para a galera, e festejadíssimo por muitos entre os que hoje praguejam contra o fundão — declarou, sem avaliar consequências, sem estudar qualquer possível modulação, sem pensar em aperfeiçoamentos do modelo, a inconstitucionalidade do financiamento empresarial de eleições.

Dinamitou-se o prédio sabendo que outro teria de ser erguido ali — e sem qualquer projeto de edificação para ocupar o terreno, o que costuma resultar em engenharia pior, paraíso para a construção de um puxadinho.

O que os bem-intencionados pensavam que viria no lugar?

O problema — toda a desgraça — não está em quanto de dinheiro público será gasto para bancar eleição; mas que eleição, no século XXI, seja bancada por dinheiro público.

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