- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Muitos preferem ficar nas ruas porque nelas têm o amparo de uma sociabilidade comunitária, de trocas de favores e de informações sobre a cidade residual e oculta que os ampara
A subversiva e natalina economia da compaixão é um modo popular e necessário de enfrentar as irracionalidades sociais do nosso capitalismo subdesenvolvido porque não realizado na sua plenitude. Pelo caminho que vamos, não o será nunca. A compaixão é o recurso usado por almas caridosas para o reparo tópico, em nome de todos, das injustiças sociais praticadas no interesse de poucos.
Não estou fazendo a censura e a recusa da compaixão. A obra dos últimos guardiães da decência e do respeito pela condição humana que, com ela, amparam os desvalidos do economismo sem pé nem cabeça. As vítimas dos gestores caros que não avaliam as consequências de sua opção de fazer dos outros pessoas baratas.
Gente que acha que sabe ganhar dinheiro, mas que não sabe distribuir justiça nem sabe reconhecer direitos que, embora omitidos na lei, nascem com as pessoas. Caso do direito à vida, à alimentação, ao abrigo, ao trabalho. Já para não falar na liberdade, no direito à esperança, ao respeito, à educação, ao livro, à arte, à música, à poesia, à fé não mercantilizada. Manifestações que têm sentido na ótica crítica da economia moral.
Às bravatas e à petulância dos gestores que na economia não medem os ganhos descomunais pela régua social e que pensam a vida pelo metro do ego voraz e insaciável, opõe-se o silêncio do gesto solidário dos que ainda pensam a vida de todos como a vida do próximo. Pautam-se por regras pré-modernas de teor humanístico que, trazidas para a atualidade, funcionam como contraponto crítico da economia moderna. É a mão na consciência que o frio e mero cálculo do lucro não conhece nem sabe o que é nem ensinam nas escolas de economia.
Talvez porque, em minha idade, eu tenha mais tempo para andar por aí e prestar atenção naquilo que o tempo me permite ver melhor e mais atentamente, vejo muitas manifestações desse outro Brasil que já foi mais visível do que é hoje. Não só, mas meu principal laboratório de observação é a cidade de São Paulo, lugar extremo das consequências sociais da economia da indiferença. Mas também de suas injustiças mais escandalosas.
É a metrópole, provavelmente, com maior número de seres humanos descartáveis, os sem lugar e sem destino. Os seres humanos que o acaso da loteria do desemprego e do abandono, do ganho insuficiente, do prato vazio, do teto descoberto lançou na vitrina do que dizemos não ser e somos. O mostruário das vítimas do “e eu com isso?”.
Porque elas acumulam o bom e o ruim, as cidades são o mirante das contradições sociais. Mas também das ações dispersas dos que tentam contorná-las e atenuar o drama cotidiano das vítimas das iniquidades do cálculo de custo sem responsabilidade social.
Tenho visto muita coisa por aí. Os que saem à noite, em grupos, para servir um lanche quente, uma caneca de café com leite e um pão com manteiga ou uma refeição aos que têm fome. As instituições que recebem para o almoço ou para o jantar os que carecem do pão nosso de cada dia.
Ou bons restaurantes do centro da cidade que, passada a hora do almoço da clientela habitual, fecham as portas e abrem a porta lateral para receber moradores de rua e servir-lhes a comida. Os que na cracolândia, muitas vezes os próprios drogados, ainda têm o discernimento da solidariedade, do amparo e da proteção aos mais frágeis no meio daquela dolorosa agonia que os vitima e mata lentamente.
Os que, uma vez por semana, vão a certos pontos da cidade, com tesoura e navalha, cortar cabelo e fazer a barba dos pobres de rua para restituir-lhes a fisionomia perdida na desfiguração do desamparo. Para que possam ser olhados no rosto e reconhecidos como seres humanos. Ou possam se olhar no espelho e descobrir que ainda estão vivos.
Gente que ainda segura a mão dos desvalidos, que a sociedade soltou à beira do precipício do cada um por si e Deus por todos. Gente de prontidão pelo próximo e semelhante. Gente subversiva que questiona na prática a sociedade iníqua do lucro pelo lucro, que em nome dos outros tem vergonha da miséria descabida e desnecessária.
Moradores de rua que têm mais amigos nos cães do que naqueles que por omissão e ambição são os responsáveis pela cidade que dorme a céu aberto, em noites de estrelas, de frio ou de chuva. Os que não têm onde reclinar a cabeça. Cães tão amigos que a eles dedicam seus donos o pouco que conseguem para levá-los ao veterinário e mantê-los bem e vivos.
Muitos preferem ficar nas ruas porque nelas têm o amparo de uma sociabilidade comunitária, de trocas de favores e de informações sobre a cidade residual e oculta que os ampara. Coisas como onde ficam os cemitérios com os melhores banheiros ou túmulos vazios para passar uma noite, como o do Araçá.
*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador emérito do CNPq, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Desavessos” (Criarte).
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