- Valor Econômico
Substituição de Celso de Mello irá mudar equação no STF
Para mudar a cara do Supremo Tribunal Federal, o presidente Jair Bolsonaro talvez não precise de um cabo e de um soldado, ou de aumentar de 11 para 21 o número de seus integrantes, como chegou a propor durante a campanha. É possível que seja desnecessário para este propósito antecipar a idade de aposentadoria dos ministros, conforme os bolsonaristas mais fanáticos propuseram na Câmara. E nem promover de baciada processos de impeachment no Poder Judiciário, outra iniciativa dos aliados incondicionais do presidente.
A troca que o presidente empreenderá este ano, com a aposentadoria compulsória do decano, o ministro Celso de Mello, subverte toda a equação. Ele completa 75 anos no dia 1º de novembro.
Muita atenção se dá ao perfil de quem vai entrar. Se será o ministro da Justiça, Sergio Moro, ou, como parece mais provável agora, alguém “terrivelmente evangélico”, conhecedor mais profundo da Bíblia do que dos códigos. Outra vertente que permite antever quão emblemática pode ser a substituição é olhar as características de quem sai de cena.
Decano não é propriamente uma função, é um personagem do qual o ator titular pode representar o papel inteiramente ou não. O decano exerce naturalmente força contrária a mudança de tradições, é um ponto de equilíbrio entre diversas tendências e vaidades.
A politização extremada do Supremo - incapaz de estabelecer jurisprudência firme em diversos pontos, dado ao consenso quase impossível de seus membros, mergulhado no debate partidário que está- revestiu o decano de outra característica: a de ser uma voz da casa, uma espécie de presidente honorário do colegiado. Nos últimos anos, a voz de Celso de Mello soou mais alto que a de Cármen Lúcia e Dias Toffoli, para ficar apenas nos últimos presidentes.
Exemplos recentes neste sentido, compilados por Felipe Recondo e Luiz Weber, autores do livro “Os Onze”, publicado no ano passado: em abril de 2018, na ocasião do julgamento do habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tentava impedir sua prisão após a condenação em segunda instância, o então comandante do Exército Eduardo Villas Bôas fez a sua famosa mensagem pelo Twitter em que disse que a Força compartilhava “do anseio de todos os cidadãos de bem”. Celso de Mello respondeu ao que lhe pareceu uma ameaça encoberta em plenário: “Em situações tão graves assim, costumam insinuar-se pronunciamentos ou registrar-se movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir”.
Meses depois, veio à tona a fala de Eduardo Bolsonaro em que o filho do hoje presidente bravateou que bastava um soldado e um cabo para fechar o Supremo, “sem desmerecer o soldado e o cabo”. Mello voltou a se pronunciar, desta vez pela imprensa. Chamou a declaração de inconsequente, golpista, irresponsável, inaceitável e autoritária.
No ano seguinte, com Bolsonaro já na Presidência, Mello pediu - e foi atendido - para que se pautasse para a votação em plenário a ação de inconstitucionalidade que criminalizava a homofobia, da qual ele era relator. Ao proferir seu voto a favor da criminalização, citou a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, por pedir que meninas vestissem rosa e meninos azul. Afirmou que esta era uma visão de mundo que restringia liberdades fundamentais da população LGBT.
Depois da publicação do livro, é possível lembrar outra atuação de Celso de Mello em que ele se colocou como um ator contra veleidades antidemocráticas. Na ocasião em que o perfil do presidente Jair Bolsonaro divulgou um vídeo em que um leão era acossado por hienas, uma delas identificada como o STF, o ministro respondeu quase de imediato, à imprensa: disse que o vídeo parecia partir de quem “desconhece o dogma da separação de poderes e, o que é mais grave, de quem teme um Poder Judiciário independente e consciente de que ninguém, nem mesmo o presidente da República, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”.
É esse o ministro que sai de cena no fim de ano, em uma troca que, além de colocar a assinatura de Bolsonaro na Suprema Corte, também altera a ordem de votação, as expectativas, as possibilidades de aliança dentro do Judiciário. É difícil que o personagem de decano seja exercido do mesmo modo por Marco Aurélio, que se aposenta alguns meses depois, ou por Gilmar Mendes, a partir de abril do próximo ano. Em que pese o trânsito político e o conhecimento jurídico que nenhum dos muitos inimigos de Gilmar é capaz de negar, o futuro decano é, de longe, o ministro do Supremo com pior imagem, alvo de nada menos que nove pedidos de impeachment. A chance deles prosperarem é próxima de zero, mas tolhem o ministro de exercer o papel de referência da Corte.
O Judiciário cultiva a imagem de ser um esteio do direito da individualidade frente às tendências majoritárias na opinião pública e no centro do poder político. Mas não há que se tomar essa intenção manifesta como um postulado. A decisão a favor da censura ao especial de Natal do grupo “Porta dos Fundos”, proferida pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Benedicto Abicair é sugestiva de que o Brasil vive novos tempos.
Acionado para se manifestar a respeito do caso, o ministro Dias Toffoli, fez o que se esperava, que é derrubar a liminar. Fica o assombro portanto com o fato da censura ter sido estabelecida por um juiz de segunda instância nas circunstâncias em que foi concedida, dias depois de uma investida que se pretendeu terrorista contra a produtora do vídeo. A defesa do exercício da liberdade de expressão, feita por Toffoli, é um sinal alentador para quem acredita que o vento da mudança não arrastará a tudo.
*César Felício é editor de Política.
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