Onda evangélica – Editorial | Folha de S. Paulo
É legítimo que denominação amplie peso, mas sem impor convicções aos demais
Desde que os portugueses aportaram na Bahia há mais de 500 anos e, entre seus atos inaugurais, celebraram uma missa, a religião católica esteve intimamente imbricada com a história do Brasil.
Na colonização, ordens religiosas tiveram papel relevante na ocupação do território conquistado; durante o período monárquico, o catolicismo foi alçado à crença oficial do Estado; mais recentemente, Getúlio Vargas declarou Nossa Senhora Aparecida a padroeira do país.
Tamanha presença e influência traduziu-se numa prevalência dessa religião, situação que persiste até hoje. Tal cenário, contudo, vem se modificando de maneira célere nas últimas três décadas.
De 1991 a 2010, a proporção de católicos caiu 1 ponto percentual ao ano, ao passo que a de evangélicos cresceu 0,7. Na última década, de acordo com especialistas, o fenômeno ganhou ainda mais ímpeto.
Hoje, 50% dos brasileiros se declaram católicos, enquanto 31% se dizem evangélicos, conforme mostrou recente pesquisa do Datafolha. Regionalmente, a onda protestante se mostra mais forte no Norte e no Centro-Oeste, onde o percentual de fieis atinge 39%, e mais fraca no Nordeste, com 27%.
Nessa toada, estima-se que em 12 anos o Brasil sedimente um novo credo hegemônico, com os evangélicos superando os católicos.
Essa transição religiosa, bem como suas implicações, constitui fenômeno ainda não de todo compreendido e comporta inúmeras nuances, a começar da enorme diversidade de denominações protestantes existentes no país.
Dentre os desdobramentos da ascensão evangélica, destaca-se, sem dúvida, o crescimento da participação desse grupo na política.
Na eleição de 2018 foram sufragados 91 parlamentares identificados com essa denominação, 13 a mais que no pleito anterior, numa participação que aumenta desde 2010. Cargos importantes, como o de prefeito do Rio e de ministro de Estado, são exercidos hoje por pastores licenciados.
Embora seja legítimo, na democracia, que grupos religiosos busquem ampliar sua participação política, é inaceitável que lideranças defendam ou orientem ações do poder público baseadas em sua fé.
É o que se viu, por exemplo, na proposta do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de Damares Alves de criar um programa para incentivar jovens a adiar o início da vida sexual, ou na censura cometida pelo prefeito carioca, Marcelo Crivella, de uma revista em quadrinhos que mostrava dois garotos se beijando.
Não se pode desfrutar de liberdade religiosa sem zelar pelo Estado laico. Defendê-lo deve ser tarefa de todos, qualquer que seja o grupo que o ameace.
Administração de improviso – Editorial | O Estado de S. Paulo
A “crise” no atendimento prestado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a rigor, nem sequer deveria ser chamada assim, pois sua recorrência desafia a ideia de temporalidade que a palavra embute. O reiterado descaso com os cidadãos que recorrem ao INSS, não raro em situação de grande vulnerabilidade, faz parecer que o colapso da autarquia responsável por administrar o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) seja seu estado permanente.
A mais recente manifestação dessa deficiência crônica vem ocorrendo desde a promulgação da Emenda Constitucional 103, em 12 de novembro do ano passado. Se a reforma da Previdência era fundamental para reequilibrar as finanças do País, ao menos pelos próximos dez anos, igualmente o era a realização de um bom planejamento para preparar o quadro funcional do INSS, bem como sua estrutura de atendimento, para o aumento de demanda para lá de previsível. Pois nada foi feito e hoje cerca de 1,3 milhão de pedidos de pensões, aposentadorias e outros benefícios repousam no sistema da autarquia enquanto os pobres dos cidadãos passam dias inteiros em filas sob sol e chuva ou padecem ao telefone em busca de uma nesga de informação correta sobre o andamento de seus processos.
A Nova Previdência alterou substancialmente as regras para requisição de benefícios. Antes de sua promulgação já era possível perceber o aumento significativo do número de pedidos de aposentadoria feitos por cidadãos que já tinham o direito de se aposentar e preferiam fazê-lo de acordo com as regras anteriores à reforma. Neste grupo estavam servidores do próprio INSS. De acordo com o governo federal, 6 mil deles se aposentaram no decorrer de 2019, número que corresponde a quase 25% do quadro funcional do INSS. Se um baque desta ordem já seria sentido por qualquer empresa privada bem administrada, o que dizer de uma autarquia há muito ineficiente?
Aumento da carga de trabalho mais redução do quadro funcional e o resultado não haveria de ser outro: caos. Talvez seja esta uma das razões para a ausência de nada menos do que um quinto dos servidores do INSS por licença médica. Enquanto isso, beneficiários vivos são dados como mortos, estes são dados como vivos, mães que já amamentam seus filhos há seis meses ainda aguardam a liberação do auxílio-maternidade, afastados do trabalho não recebem o auxílio-doença, aposentados não recebem aposentadoria, a lista do desrespeito é longa.
Apenas agora, passados dois meses da aprovação da aguardada reforma da Previdência, o governo federal decidiu agir e executar uma “operação de guerra” para pôr fim à fila de processos no INSS. É quase sempre assim, uma administração pública eminentemente reativa, incapaz de antever problemas e pensar em soluções, seja por incompetência, seja por má vontade.
E já que se fala em “guerra”, nada mais previsível do que convocar os militares, sempre eles, para dar cabo de mais um problema cuja resolução não faz parte de sua expertise. De acordo com o Estadão/Broadcast, o governo federal pretende recrutar militares da reserva para integrar uma força-tarefa que atuará na redução da fila de atendimento no INSS. Com base na lei que reestruturou o regime das Forças Armadas, sancionada recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro, militares da reserva poderão ser empregados no serviço público de natureza civil, em caráter voluntário e temporário, em troca de um adicional de 30% em sua remuneração. A ideia do Palácio do Planalto é empregar os reservistas no atendimento de balcão e liberar os servidores do INSS para o processamento dos pedidos de benefícios que estão em fila. Ilegal, portanto, a medida não é, mas é retrato bem acabado do improviso que marca a administração pública no País em variadas situações.
Já seria um imperativo moral dar tratamento digno aos cidadãos que precisam recorrer ao INSS. Mas, além disso, a lei determina que nenhum segurado espere mais do que 45 dias para ter o seu pedido analisado. Resolver rapidamente a atual “crise” da autarquia é, portanto, uma obrigação legal.
Inflação acima do centro da meta em 2019 não preocupa – Editorial | Valor Econômico
Para 2020, a meta de inflação é de 4%, sempre com um intervalo de tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo
Há motivo para preocupação com o caminhar da inflação neste ano depois que o índice de dezembro foi maior do que o esperado pelos especialistas, levando o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 2019 a fechar acima do centro da meta? Não, respondem quase em uníssono muitos economistas que acompanham de perto as variações dos preços ao consumidor. Tanto que ainda se espera que o processo de corte das taxas de juros continue.
Essa avaliação não significa, porém, que não haverá percalços para Brasília nos próximos meses como decorrência de a inflação ter superado o centro da meta. Como escreveu Ribamar Oliveira, na edição de segunda-feira, do Valor, para preservar o poder aquisitivo do salário mínimo, como determina a Constituição, o Congresso Nacional terá que alterar a medida provisória 916/2019 que fixou o valor do piso salarial neste ano em R$ 1.039,00. Apenas para corrigir a inflação de 2019, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), o valor teria que passar para R$ 1.045,00 - uma diferença de R$ 6,00 em relação ao que está em vigor. A questão é que, em ano eleitoral como é 2020, os deputados e senadores poderão ser tentados a dar um aumento real para o mínimo.
Mesmo que o Congresso não conceda aumento real para o salário mínimo, o impacto do novo valor e do INPC nas contas da União neste ano será muito grande, algo em torno de R$ 8,1 bilhões. A estimativa foi feita com base no impacto do piso e do INPC nas contas da União projetado pelo Tesouro Nacional no Relatório de Riscos Fiscais da União, divulgado no fim do ano passado.
Em dezembro, conforme anunciou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na sexta-feira, o IPCA registrou uma alta de 1,15%, acima do que esperavam os analistas. Com isso, a inflação acumulada em 12 meses fechou o ano em 4,31%, percentual superior à meta de 4,25%. As carnes registraram avanço de 18,06%, respondendo sozinhas por quase metade (0,52 ponto percentual) da alta da inflação em dezembro. Os especialistas lembram, porém, que os s núcleos e a inflação de serviços seguem em patamares confortáveis, apesar de terem acelerado um pouco em dezembro, justificando, portanto, a projeção de alguns economistas de novo corte de juros este ano.
Em texto publicado pelo Valor na segunda-feira, o Mauricio Oreng, do Banco Santander, comenta que os índices de difusão, que mostram o quão espalhadas estão as pressões da inflação, rodam atualmente em torno de 50%, quando a média histórica para o indicador é de cerca de 62% a 63%. “Ou seja, esse índice mostra que as pressões de preços estão muito concentradas”, diz Oreng. Pelos cálculos do Santander, o índice de difusão “cheio” dessazonalizado ficou em 54,7% em dezembro, enquanto o índice que exclui a parte de alimentação ficou em 48,4%, também com ajuste sazonal.
O economista destaca ainda que a média dos núcleos de inflação fechou o ano em alta de 3,1% no acumulado de 12 meses, mais perto do piso da meta (2,75%) do que do centro dela. Já o núcleo EX3, que agrega os serviços e bens industriais que mais reagem à atividade e exclui alimentos, ficou em 2,8%, enquanto a inflação de serviços encerrou 2019 em 3,5%, patamar confortável.
De forma geral, apesar do aumento do índice em dezembro - quando a taxa de 1,15% foi a mais elevada para o mês desde 2002, a maioria dos analistas continua confiante em uma inflação baixa neste ano. Segundo a pesquisa Focus, do Banco Central, divulgada na segunda-feira, a mediana das projeções dos economistas de mercado para o IPCA em 2020 caiu de 3,60% para 3,58%. É uma diferença pequena, aparentemente pouco significativa, mas indica a disposição do mercado em manter suas projeções de inflação reduzida no ano.
A pesquisa Focus indicou ainda que entre os economistas que mais acertam suas previsões de médio prazo - os chamados Top 5 - a mediana para a taxa oficial de inflação permaneceu em 3,50%. Se confirmada, ficaria configurado um longo (para os padrões brasileiros) período de índices de preços realmente baixos. A projeção para 2021 desses economistas também é muito confortável. Eles estimam um índice de 3,75% para o próximo ano, abaixo do centro da meta, que é exatamente de 3,75%. Para 2020, a meta de inflação é de 4%, sempre com um intervalo de tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo.
Juiz de primeira instância continua sob ataque – Editorial | O Globo
Emenda feita no Congresso à PEC do foro privilegiado faz parte da reação de autodefesa dos políticos
É democrático que forças políticas se movimentem no Congresso para cumprir sua agenda de interesses. Faz parte da democracia representativa. E a sociedade pode acompanhar esse jogo, pois um aspecto do Legislativo é a transparência. Mesmo que haja inevitáveis manobras e costuras de bastidores, em algum momento tudo se materializa na forma de projetos de leis ou de emendas à Constituição. Pode-se, então, ficar sabendo o que está por trás de cada demanda política.
Na reação de parte dos políticos à eficácia que organismos de Estado passaram a ter no combate à corrupção, já se redigiram projetos teleguiados e se desengavetaram propostas antigas convenientes.
Um exemplo é a Lei do Abuso de Autoridade, desencavada no Senado pelo então presidente da Casa, Renan Calheiros, em defesa própria. A operação foi bem-sucedida.
Entre outras iniciativas típicas deste movimento, usa-se uma proposta de emenda à Constituição (PEC) já aprovada no Senado para reduzir o alcance do foro especial a apenas cinco autoridades: presidente da República, o vice, presidentes da Câmara e Senado, assim como do Supremo Tribunal Federal (STF). Uma redefinição bem-vinda.
Mas aproveitam a proposta de emenda à Carta para incluir em seu texto que juiz de primeira instância não poderá estabelecer medidas cautelares para parlamentares — quebra de sigilo, busca e apreensões etc. Só tribunais superiores. Por ironia, um projeto para reduzir privilégios é manipulado para criar vantagens.
O líder do Podemos, José Nelton (GO), explica que a emenda visa a evitar “juiz ativista”. Trata-se de um resultado do “efeito Moro”: para coibir a atuação dos juízes de primeira instância, como foi o ministro da Justiça e Segurança Pública, na Operação Lava-Jato, resolve-se cassar parte das prerrogativas do magistrado que atua na partida de inquéritos e processos, para torná-lo um juiz de segunda classe.
A intenção de esvaziar a primeira instância da Justiça é grave. Porque é nela que começa a avaliação de provas concretas. Recursos podem ser encaminhados à instância seguinte, a segunda, mas, a partir desta, nas Cortes superiores, não se julgam mais provas, apenas delibera-se sobre interpretações jurídicas. Depois do recuo do Supremo na prisão em segunda instância, esta emenda apresentada na Câmara esvazia ainda mais o poder dos juízes que entram nas entranhas propriamente ditas dos processos.
Outra emenda, a do juiz de garantias, também feita no Congresso, ao pacote anticrime, recém-sancionado pelo presidente Bolsonaro, vai na mesma direção de reduzir o peso do juiz de primeira instância. Uma parcela de seu poder foi subtraída.
Os efeitos dessas medidas, cujo objetivo é bastante claro, serão a volta da percepção de que no Brasil o criminoso de colarinho branco goza de grande impunidade.
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