sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

José de Souza Martins* - Economia da enxurrada

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Aqui, o tempo do capitalismo é o tempo breve do lucro imediato

As enchentes e inundações na região metropolitana de São Paulo, na segunda semana de fevereiro, foram explicadas por governantes e periodistas, ainda que com pontos de vista opostos, pela mesma lógica e com base nas mesmas premissas. Insuficiência de piscinões, falta de drenagem dos rios, povo descuidado que joga lixo nos bueiros, gente que invade terras de risco. Enfim, o supérfluo e não o essencial.

Há causas históricas do problema, perfeitamente conhecidas dos pesquisadores de nossas universidades. Nenhuma das medidas praticadas ou reclamadas o resolverá. As calamidades desse gênero persistirão porque erros estruturais e constitutivos, de verdadeira usurpação e predação contra a natureza, não têm conserto sem medidas radicais de subversão corretiva das concepções anticapitalistas de economia e de direito fundiário que nos regem.

A água despejada pela natureza pelos lados das serras e na cabeceira dos rios que circundam boa parte da cidade enxurra os vales que eram seus. E que foram possuídos e violentados pela falsa suposição de que a natureza é presa dócil em face da prepotência da engenharia, da economia e da política. Irresponsáveis porque sem o norte das consequências e do preço social a pagar por elas.

Sobre a mesma região metropolitana da São Paulo das enxurradas, inundações e escorregamentos de dias passados, pesquisadores das instituições públicas de pesquisa, como a Universidade de São Paulo e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas, há anos realizam estudos de alta qualidade sobre causas e consequências. Destaco dois estudos notáveis, que os governantes não leram e nem mesmo a mídia conhece para que possa fazer os questionamentos adequados e as responsabilizações apropriadas. Para formar uma opinião pública não alienada.

No caso da USP, há o fundamental estudo, de 1987, da professora Odette Carvalho de Lima Seabra, do Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, sobre “Os Meandros dos Rios nos Meandros do Poder”. O título já diz tudo. Ela analisou cuidadosamente a radical mudança da paisagem com a concessão pelo governo, em 1927, à Light and Power, companhia canadense de eletricidade, do poder sobre as águas do rio Tietê e do rio Pinheiros e respectivos territórios. A companhia poderia retificar os rios, redesenhar a paisagem da cidade, receber a recompensa da propriedade das terras bonificadas e comercializá-las.

Em fevereiro de 1929, São Paulo teve uma de suas maiores enchentes. Depois das chuvas, já na estiagem, comportas de represas foram abertas para elevar o nível da inundação, quando imediatamente o mais alto nível da água foi demarcado e tomado como referência para definir a área da várzea. Portanto, o das terras que ficariam sob sua tutela para a retificação do rio e delimitação da área que receberia como recompensa pela obra.

A área demarcada foi de 20,7 milhões de metros quadrados, dos quais apenas 20% foram necessários nas obras de canalização do rio e de obras correlatas. Os 80% restantes, quase 2 milhões de metros quadrados, foram disponibilizados para a empresa negociar no mercado imobiliário.

A arquiteta e urbanista Angela Kayo, em 2013, em sua dissertação de mestrado no Instituto de Pesquisas Tecnológicas, assinala que as ruas inundadas nas enchentes da cidade são principalmente aquelas abertas nos lugares liberados para reuso imobiliário com o aterramento do leito fluvial em decorrência da canalização dos cursos originais.

O Brasil é um dos países em que existe uma lucrativa economia resultante de uma política fundiária irresponsável, cujas consequências inevitáveis têm sido a decadência ambiental e, em especial, escorregamentos e inundações de consequências trágicas, como em Brumadinho, ou dramáticas como, agora, em Belo Horizonte e São Paulo. Com a característica peculiar de que uns planejadamente ganham e outros inocentemente perdem.

São traços muito singulares do capitalismo que se desenvolveu no país, um capitalismo de imitação, superficial, apenas para ganhar, e não para construir uma nova, moderna, transformadora e duradoura economia. Aqui, o tempo do capitalismo não é o tempo da história, como na Inglaterra, na França, na Alemanha, no Japão. Aqui, o tempo do capitalismo é o tempo breve do lucro imediato e do desdém pelas consequências de abusos previsíveis e calculáveis

Não é casual que a história de empresas pioneiras da indústria paulista tenha como capítulo decisivo da formação de seu capital a especulação fundiária como fonte de acumulação primária de capital. A São Paulo moderna é o resultado desse capitalismo rentista e individualista, que entre seus subprodutos antissociais nos legou as enchentes.

*José de Souza Martins é Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Pesquisador Emérito do CNPq e membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Linchamentos - A Justiça Popular no Brasil" (Contexto).

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