- O Globo / O Estado de S. Paulo
Já não há qualquer esperança de que o governo possa montar uma coalizão governista eficaz no Congresso
Já há muitos meses, o governo tem mostrado alarmante despreocupação com a exiguidade de tempo com que se debate a condução da política econômica. Fevereiro se foi. E a agenda de reformas, postergada para este ano de eleições municipais, pouco ou nada avançou, num momento em que a recuperação da economia se mostra bem menos convincente do que se esperava. E em que se dissemina o temor de que o círculo virtuoso que parecia ter ganho força no final do ano passado tenha perdido fôlego.
Já não há qualquer esperança de que o governo possa montar uma coalizão governista eficaz no Congresso. O presidente insiste em se mover na direção oposta. O avanço da militarização do Planalto — com a nomeação do general Braga Netto para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República — não deixa qualquer dúvida sobre a exacerbação do encastelamento de Bolsonaro.
Não surpreende que boa parte dos analistas esteja convencida de que, para todos os efeitos, o presidencialismo de coalizão desapareceu da cena política brasileira. Há até quem se apresse a assegurar que desapareceu de vez. E, diante do não sistema presidencialista que hoje se tem, não falta quem se agarre à esperança de que, no avanço do pesado programa de reformas, a desalentadora falta de empenho do presidente venha a ser plenamente suprida pelo protagonismo do Congresso. Pode até ser. Mas é inevitável constatar que, nessa esperança, há muito mais torcida do que análise.
Os argumentos que vêm sendo brandidos são frágeis e pouco convincentes. E têm o travo das racionalizações apressadas. Mal comparando, o que vem à mente é a famosa frase que teria sido sussurrada por Galileu, após ter sido obrigado a abjurar a ideia de que a Terra girava em torno do Sol: E pur si muove. (E, no entanto, se move.) Não obstante tudo que acabara de dizer, tinha sólidas evidências de que, de fato, a Terra se movia.
Em contraste, boa parte dos analistas do problemático quadro econômico e político que vive o país vem se comportando como Galileu às avessas. Confrontados com infindáveis dúvidas e indicações em contrário, insistem em sussurrar, sem qualquer fundamentação mais sólida, sua inabalável convicção de que o Congresso voltará a se mover, como em 2019, em novo e inexorável surto de protagonismo reformista.
Mesmo que a deficiência do presidente fosse tão somente falta de empenho no avanço das reformas, já seria muito difícil que tal carência pudesse ser plenamente compensada pelo protagonismo do Congresso. Muito mais difícil se afigura essa compensação, no entanto, quando se leva em conta o incorrigível papel desestabilizador que vem sendo desempenhado por Bolsonaro.
Sem ir mais longe, basta ter em mente o pandemônio político armado pelo presidente ao longo das duas últimas semanas. Assombrado pelos possíveis desdobramentos da morte do miliciano Adriano da Nóbrega em cerco policial na Bahia, o presidente se permitiu desencadear uma crise federativa de proporções inusitadas, que redundou em carta de protesto contra sua postura, subscrita por 20 dos 27 governadores. De Flávio Dino a João Doria.
É fácil perceber como episódios desestabilizadores desse tipo, recorrentemente deflagrados pelo Planalto, têm amplificado em grande medida as dificuldades de mobilização do Congresso com a tramitação das reformas. E nada indica que tais episódios estejam prestes a se tornar menos frequentes ou menos danosos. Muito pelo contrário.
Não há como ter ilusões. Sem empenho decisivo do Poder Executivo, o avanço do complexo programa de reformas que o país tem pela frente ficará seriamente comprometido. Pode até ser que, mesmo em condições tão adversas, uma parte restrita das reformas em pauta venha a ser aprovada pelo Congresso. Mas se o jogo possível é esse, há que se adotar estratégia mais realista. É fundamental que os presidentes da Câmara e do Senado saibam exercer sua seletividade e se concentrem nas reformas cruciais cuja aprovação seja factível. Desde já. Não há tempo a perder.
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