sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Maria Cristina Fernandes - O voto de outubro num enclave bolsonarista

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Na única cidade de Pernambuco em que o presidente venceu, a economia segue em lenta recuperação, mas os pré-candidatos evitam críticas ao bolsonarismo

No segundo turno de outubro de 2018, o presidente Jair Bolsonaro venceu em uma única cidade em Pernambuco, Santa Cruz do Capibaribe, encravada no maior polo têxtil do Nordeste. A cidade de 107 mil habitantes, no agreste do Estado, se anuncia pelos outdoors gigantes com propaganda de marcas locais de jeans, produto da qual a região é a segunda maior fornecedora do país, com 14% da produção nacional.

A paisagem é marcada pelo Moda Center, entreposto que reúne dez mil lojistas e por onde passam, anualmente, dois milhões de pessoas, e por motos a carregar fardos com peças de roupas entre as facções. É este o nome que se dá às fabriquetas familiares subcontratadas por médias e grandes confecções, fornecedoras de marcas de todo o país. No fim de semana, os 56 quilômetros que separaram Santa Cruz do Capibaribe, Caruaru e Toritama, as três cidades que formam o pólo têxtil, se transformam numa fila de carros, ônibus e caminhões em frequentes congestionamentos.

O empresário Allan Carneiro, de 36 anos, não contribuiu para a vitória do presidente da República, mas é um produto acabado dos reflexos do bolsonarismo na política da região. Carneiro votou no candidato do Partido Novo, João Amoedo, no primeiro turno, e se absteve no segundo. Dono de uma confecção de camisetas infantis, onde gera 40 empregos diretos e 80 indiretos (nas facções), o empresário foi síndico do Moda Center por quatro anos. Ao deixar o cargo, no fim do ano passado, foi convidado a se filiar ao PSD para se candidatar à prefeitura.

Carneiro junta uma linguagem antissistema, de pegada liberal mas avessa aos despautérios. Lamenta a demofobia do ministro da Economia, Paulo Guedes, mas aplaude o dólar valorizado por manter longe a concorrência chinesa. Não se considera bolsonarista, apesar de já ter conseguido apoio de parte do grupo que estruturou a campanha do presidente no município, mas põe fé na política econômica e promete, se eleito, estabelecer uma relação pragmática com o governo federal em nome de obras para o município.

O presidente de seu partido, Gilberto Kassab, ex-ministro dos governos Dilma Rousseff e Michel Temer, tem gravitado em torno do bolsonarismo e agregado pré-candidaturas que não são contra ou a favor de Bolsonaro, muito pelo contrário, como é o caso do ex-secretário municipal de São Paulo Andrea Matarazzo.

O discurso de Carneiro abriga expressões como “derrotar os coronéis”, “quebrar as oligarquias” e “acabar com a indústria da seca”. O empresário não vê empecilhos, como empresário, para conseguir votos da legião de trabalhadores das facções. Como 80% dos moradores da cidade, é forasteiro (nasceu na Paraíba). Nasceu numa família que confeccionava redes e começou a vida com uma fabriqueta, história que diz compartilhar com a de muitos eleitores que pretende conquistar.

O morador da região foi fielmente retratado em “Tô me Preparando pra Quando o Carnaval Chegar”, documentário de Marcelo Gomes exibido no Festival de Berlim e detentor da segunda maior audiência de 2019 no Brasil. O filme se passa em Toritama, município vizinho de Santa Cruz, ainda mais dominado pelas facções têxteis. O cineasta, que visitava a cidade quando criança, viajando com o pai, fiscal de renda, encontrou uma Toritama sem cadeiras na calçada quando lá voltou, adulto. Até os galinheiros haviam sido tomados pelas máquinas de costura.

Seus personagens se consideram detentores da melhor profissão, que é a de serem donos do próprio tempo, ainda que sua jornada de trabalho se inicie às 7h da manhã e prossiga até as 22h, com intervalos para almoço e jantar. Depois que a cidade foi tomada pela confecção, ninguém emigra mais. Seus personagens acham Toritama melhor que São Paulo porque não precisa de estudo para conseguir renda. Cada lote de 100 bolsos costurados rende R$ 10. De tão achatado, o custo da confecção local é páreo para os chineses - quando o câmbio deixa.

Em tupi-guarani, Toritama significa terra da felicidade, mas Marcelo só a encontrou no carnaval - bem longe dali - e dele tirou o título do documentário. É o único momento do ano em que a cidade para. As pessoas vendem geladeira, fogão ou sofá para conseguir passar o carnaval na praia. Na volta, trabalham para recomprar seus bens, muitas vezes mais caros.

Mas nem o espírito dominante do “por conta própria” foi capaz de conter o desagrado, na região, com a reforma da Previdência bolsonarista. Como predomina a informalidade, ficou mais difícil para eles somar 15 anos (mulheres) ou 20 anos (homens) de contribuição para fazer jus ao benefício previdenciário. Numa confecção de meia dúzia de trabalhadores de Caruaru, especializada em cós de calças e bermudas, Bolsonaro teve cinco votos. Perdeu todos depois da reforma da Previdência.

A escolha, motivada pelo binômio corrupção/segurança, não embutia a perspectiva de perda de direitos. Um dos eleitores arrependidos é a encarregada Maria do Rosário Lopes, de 43 anos. Ela tinha uma pequena confecção familiar até 2016, quando quebrou, voltou a ser empregada e, com o salário de R$ 1,5 mil e dois filhos para criar, viu-se apertada e sem perspectiva de futuro.

O Natal trouxe um fôlego que ainda está por se provar prolongado. Em Santa Cruz do Capibaribe, as vendas foram 8% superiores às do ano anterior. Dono da maior confecção da cidade, Arnaldo Xavier foi surpreendido positivamente pelo desempenho das vendas e retomou os planos adiados de modernizar sua fábrica, a Rota do Mar. Já chegou a ter 800 funcionários, no auge da era Luiz Inácio Lula da Silva, cuja passagem pela cidade estampa uma das fotografias do painel que dá acesso a seu escritório. Reduziu pela metade e espera fechar o ano com 500. Licenciado para produzir para marcas do Sul e Sudeste, como Mormaii e Reserva Natural, Xavier começou o ano com mais encomendas do que esperava. Confiante nos juros baixos, voltou a investir. Em janeiro, comprou R$ 500 mil em máquinas.

O desempenho de Xavier ainda não contaminou a cidade. Com as vendas do Natal, oito em cada dez associados de Clube de Diretores Lojistas da cidade apostaram num 2020 melhor. Na primeira sondagem do ano, no entanto, Bruno Bezerra, diretor do CDL, identificou um movimento mais tímido do que se anunciava, a despeito de a alta do dólar afetar a competitividade da concorrência chinesa. O que tem ajudado a manter o otimismo da região são as chuvas, mais fortes do que as do ano passado. Com um caminhão de água de 15 mil litros a R$ 300, a perspectiva de um inverno chuvoso é prenúncio de mais dinheiro no bolso.

A água e a saúde, numa cidade em que o hospital municipal tem três médicos, rendem mais noticiário nos blogs e nas rádios locais do que a fila do Bolsa Família ou as empregadas domésticas sem Disney. Casos cirúrgicos têm que ser removidos para Caruaru, Campina Grande, na Paraíba, ou Recife. As obras da adutora do Agreste foram retomadas, bem como da BR 104.

A água é, de longe, o assunto preferido do mais bolsonarista dos empresários da região, Robson Ferreira. Dono de uma atacadista de tecidos, o empresário de 36 anos foi um dos líderes da campanha que deu a Bolsonaro a vitória na cidade. Paulista de Jacareí, chegou à cidade em 1992, aos 9 anos, depois que o pai, natural de Santa Cruz, perdeu o emprego da vida inteira na Philips e migrou de volta à terra natal com a família.

Depois da transposição do rio São Francisco, Robson agora quer a transposição do rio Amazonas, obra que teria metade da extensão do gasoduto da Bolívia e que ele diz ter potencial para gerar 5 milhões de empregos no Nordeste. Foi esse o pedido que fez quando o presidente apareceu numa “live” do encontro estadual dos aliados que buscam adesões para a criação do “Aliança pelo Brasil”.

Na estrada para recolher assinaturas para o partido, Robson já não tem certeza de que a legenda sairá a tempo de disputar a eleição municipal e também hesita sobre sua própria candidatura. A política no município é polarizada entre o PSDB, que governa a cidade há oito anos, e o bloco de partidos liderado pelo PSB do governador Paulo Câmara. Tucanos, o prefeito de Santa Cruz, Edson Vieira, assim como a de Caruaru, Raquel Lyra, não são alinhados ao presidente da República, mas não o criticam abertamente.

O bolsonarista número 1 de Santa Cruz do Capibaribe defende o presidente com o discurso de que o governo fez a lição de casa com a reforma da Previdência e começa a retomar obras. Diz que as polêmicas que embalam o governo vão se diluir quando a economia ganhar fôlego. Só não se conforma com a demora no enxugamento da máquina pública. Quinze meses depois da posse do presidente, mantém intactas as bandeiras com as quais entrou em campanha.

Queixa-se das vagas abertas em sua empresa que não consegue preencher pela ausência de mão de obra qualificada na região. Quem procura o Senai é treinado em máquinas antigas e não consegue operar aquelas mais modernas com as quais a indústria da região trabalha. Se for para continuar assim, é melhor privatizar tudo, diz, sobre o Sistema S.

O maior entusiasta de Bolsonaro da região também demonstra impaciência com a demora na reforma do Estado. O empresário se queixa de que não adianta só tirar do povo. Cobra que se corte na carne do Legislativo e do Judiciário. Sem isso, não vê como o bolsonarismo comece, nas eleições municipais de outubro, a desalojar a situação no Nordeste, região em que a esquerda elegeu sete dos nove governadores e se transformou no seu mais resiliente reduto nacional.

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