terça-feira, 17 de março de 2020

Armando Castelar Pinheiro* - O coronavírus e a bolha

- Valor Econômico

Passado o pior, a relação entre bancos centrais, tomadores de dívidas, investidores, voltará a funcionar como antes?

A crise mundial do coronavírus tem gerado muita dor. É o que conta mais. Também causou grandes perdas financeiras, para desespero de muita gente. Por outro lado, também tem gerado debates instigantes. Um deles é se esses choques passarão sem deixar marcas na economia mundial, se após a crise as coisas voltarão a ser como antes.

O número de pessoas infectadas com coronavírus, dizem os especialistas, ainda deve aumentar bastante, na Europa, nos EUA e no hemisfério sul. Uma estatística interessante que vi é que no início esse número cresce em progressão geométrica à base de algo como 33% ao dia. A grande questão então é quanto demora até a epidemia começar a perder força. Tem gente que fala na infecção de 30% a 60% da população mundial. Porém, na China e na Coreia do Sul, onde a epidemia parece razoavelmente sob controle, os casos de coronavírus confirmados correspondem a “apenas” 0,0057% e 0,0151% da população, respectivamente. Na Itália, onde a epidemia ainda avança, até aqui 0,024% da população foi diagnosticada com a doença.

A estatística coreana, mais fidedigna que a chinesa, onde é provável que haja uma sub representação amostral, seria o cenário positivo. Aplicada ao Brasil, corresponderia a 31.776 pessoas. Já a italiana, um pior cenário, resultaria em 51.256 infectados. Reconhecendo que não seremos tão bons quanto os coreanos no controle da doença, e usando cálculos bem aproximados, esses números sugerem que no final de abril a epidemia estaria perdendo força no Brasil. Em pesquisa junto a economistas e operadores de mercado, a expectativa é que na Europa e nos EUA a coisa esteja sob controle até maio ou junho. Palpites de não especialista, claro.

Na economia, em princípio, seria um processo semelhante ao visto na China: fortes perdas concentradas no período mais agudo da doença e, principalmente, das medidas de combate a ela, como quarentena, proibição de viagens etc. Muito da produção perdida nesse período, em especial que não no setor de serviços, seria depois recuperada e a economia voltaria ao normal, com a ajuda de pacotes de estímulo governamental.

O que se vê com a chegada do vírus à Europa e aos EUA é, porém, uma nova faceta para a crise. Permitam-me elaborar um pouco antes de explicar o que quero dizer com isso.

Desde a grande crise financeira de 2008-09, como se sabe, o mercado financeiro mundial trabalha com taxas de juros muito baixas. Em certo momento, inclusive, foram mais de US$ 17 trilhões em títulos que rendiam taxas de juros nominais negativas. Há quem atribua isso a um processo de estagnação secular: com o mundo fadado a crescer pouco e a ter inflação baixa, e os setores que mais crescem sendo os de tecnologia, em que o uso de capital é baixo, a demanda por investimento é baixa, a poupança é alta, e com isso os mercados operam com juros baixos.

Eu tendo a uma interpretação distinta. Credito os juros baixos mais à atuação dos bancos centrais, que não só colocaram os juros de curto prazo muito para baixo, em alguns casos para valores negativos, como emitiram trilhões de dólares para comprar títulos longos, trazendo toda a curva de juros para baixo. Para mim, os juros baixos não refletem o que os investidores esperam da economia, mas sim das futuras ações dos bancos centrais. Afora a regulação de investidores institucionais, só isso explica se investir dinheiro em papéis que pagam juros negativos.

Criou-se então um círculo vicioso entre os bancos centrais e o mercado que gerou uma bolha de dívida, pública e privada. Parte desse processo se deu com as empresas se endividando para recomprar suas ações, o que alimentou muito da alta das bolsas. Outra parte, com empresas de alto risco emitindo volumes gigantescos de títulos de dívida. Exemplos do que se passou a chamar “search for yield” (busca por retorno).

Enquanto esse processo dependeu apenas dos bancos centrais, houve sustos, que foram breves e controláveis. Sempre que os investidores começavam a perder interesse em papéis de risco, inclusive ações, o banco central emitia mais dinheiro, baixava o retorno de outros títulos e a festa continuava.

O coronavírus trouxe, porém, um outro tipo de choque: ele faz com que as empresas não tenham receita, pois os clientes não compram, ou porque os trabalhadores estão de quarentena. Pensem, por exemplo, nas companhias aéreas. Sem receita, e muitas pessoas sem renda, os devedores não têm como honrar suas dívidas. A esse choque se somou a briga entre a Rússia e a Arábia Saudita: os produtores de petróleo americanos são grandes devedores e a queda do preço do petróleo compromete sua capacidade de honrar suas dívidas.

Vai dar um bocado de trabalho controlar esses choques no mercado financeiro e há um risco considerável de muitas empresas falirem. O banco central americano (Fed) trouxe os juros de lá para zero, mas as bolsas caíram mesmo assim. A pergunta que me coloco, portanto, é se, passado o pior da pandemia global, a relação entre bancos centrais, investidores e tomadores de dívidas voltará a funcionar como antes.

Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ

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