- O Globo
Bolsonaro ainda não entendeu a dimensão da crise; o programa de ajuda não chegará a todos os informais, mas é um bom passo
O governo está atrasado e sendo insuficiente no combate ao efeito econômico da crise na saúde. A direção está certa, mas a qualidade da resposta tanto na pandemia quanto na economia depende de rapidez. E ainda se perde tempo. Há milhões de informais fora do Cadastro Único e eles precisarão estar na rede de proteção social. O programa anunciado pelo ministro Paulo Guedes ontem pegará só uma parte. É bom que se tenha tomado essa decisão e que seja feita uma previsão de R$ 5 bilhões por mês, durante três meses. As parcelas serão de R$ 200. Será necessário mais e por mais tempo. A queda da taxa de juros também foi vista como fraca diante do tamanho do problema. O decreto de calamidade foi até o dia 31 de dezembro porque este ano já está perdido. A economia entrará em recessão e o déficit do primário será muito maior do que a meta. À noite, a Câmara aprovou o Estado de Calamidade Pública.
Aquela coletiva ontem era para, enfim, o governo brasileiro falar a mesma linguagem que o país e mostrar que tinha entendido a gravidade da crise. E de novo foi uma comunicação errada. O presidente Jair Bolsonaro estava mais preocupado com suas implicâncias e passou mensagens dúbias sobre a gravidade do vírus. Mesmo com máscara, e dois ministros infectados, ele insistia em usar a palavra “histeria” para a preocupação com os acontecimentos. Isso sem falar na compulsiva distorção dos fatos recentes. Bolsonaro parece que, a cada dia, esquece o que fez e disse no dia anterior.
O ministro Paulo Guedes deu apenas uma informação nova, a confirmação de que haverá um programa para os trabalhadores informais. O problema é como encontrá-los. O pesquisador do Ipea, Marcelo Medeiros, especialista em combate à pobreza disse que será um grande desafio cobrir todos os que precisarão de ajuda.
— O Cadastro Único pega as pessoas que vivem com até meio salário mínimo per capita, tem 70 milhões de pessoas. Dessas, 41 milhões estão no Bolsa Família. Então, o primeiro a fazer é zerar a fila de entrada que já deveria ter sido zerada. O programa Bolsa Família não é de erradicação da pobreza, é de alívio. Cobre 20% da população. Trinta milhões estão fora do Bolsa Família, mas dentro do Cadastro. Com o uso do Cadastro, pegam-se os 30% mais pobres da população. Mas a ajuda terá que chegar no pessoal do meio, que vai até os 50% mais pobres, porque são informais e o desemprego vai aumentar — diz Medeiros.
Será difícil fazer essa transferência, e isso dentro do governo se admite. Se fosse apenas para aumentar o Bolsa Família seria automático, mas criar esse programa temporário atendendo a um novo grupo será mais difícil. A recessão pode ser mais prolongada do que o governo está imaginando. A economia vai cair e terá poucos mecanismos para retomar o crescimento. O ministro Paulo Guedes está sempre repetindo que o país estava decolando. O Brasil foi apanhado nessa crise estagnado pelo terceiro ano, depois de uma terrível recessão, de 2015-2016. Por isso o socorro pode ter que perdurar.
E isso terá que ser feito no meio de uma queda ainda incalculável da receita deste ano. Para se ter uma ideia, o Orçamento fazia a conta de royalties com o petróleo a US$ 58 o barril. A conta foi refeita para US$ 52 e isso fez cair a previsão de receita em R$ 9 bilhões, mas ontem a commodity estava cotada a US$ 22.
O governo vai gastar muito para segurar setores e terá que ter o cuidado em saber quais deles ajudar e até o formato da ajuda. Ontem o ministro Tarcísio Gomes de Freitas falou que o governo permitirá que as empresas aéreas tenham prazo na devolução de valores pagos pelos passageiros. O problema é que as empresas cobram valores exorbitantes em qualquer remarcação ou desistência. Para ser justo é preciso não dar dinheiro com o chapéu alheio e defender também os consumidores das companhias aéreas.
Na entrevista de ontem, até o ministro Luiz Mandetta, que sempre acerta, estava mais preocupado em tecer loas ao “timoneiro”. Guedes repetiu uma frase que ofende o Congresso e os fatos. “O presidente tirou R$ 5 bilhões da disputa política e deu para a saúde”. Essa transferência foi resultado de uma negociação e ele pode até se informar com seu colega da Saúde, que participou dela. Não foi ato magnânimo de ninguém.
Bolsonaro desafina o tempo todo e demonstra por atos e palavras que não entendeu a dimensão do que está acontecendo, mesmo no dia em que montou o teatro para convencer o país de que ele afinal está agindo.
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