quinta-feira, 19 de março de 2020

Vinicius Torres Freire - Entenda o novo colapso dos mercados americanos dos EUA

- Folha de S. Paulo

Todo o mundo vai para a retranca, o crédito seca, os juros sobem, o que coloca ainda mais gasolina no incêndio

Imagine que alguém queira vender um bem para pagar uma dívida e não consiga comprador. Imagine que alguém queira pegar um empréstimo, tem um bem para dar como garantia e não consiga o crédito. Imagine que um monte de gente deseje vender esses bens e pouquíssimos queiram: o preço desses bens então desaba e parte do patrimônio vira pó.

Essa é uma metáfora caseirinha do desastre que está acontecendo no maior, mais ágil e mais diversificado mercado de dinheiro do mundo, o americano. Mas, claro, o que está em preço de liquidação, com poucos compradores, são ativos financeiros.

Na crise, no medo de calote e da quebradeira, muita gente quer ficar com dinheiro em caixa ou com quase equivalentes de dinheiro (como títulos de curtíssimo prazo do Tesouro americano). O motivo fundamental dessa crise é a epidemia de Covid-19.

Esse é o maior pânico financeiro desde a explosão de 2008. Está arrastando as praças financeiras do restante do mundo para a lama. O que pode evitar desastre financeiro ainda maior? O Banco Central dos EUA “imprimir” dinheiro a fim de comprar o que está na bacia das almas e evitar liquidação ainda maior.

Os mais conhecidos desses ativos na xepa são as ações de empresas. Perdem valor por causa da perspectiva de recessão e lucros menores, mas não apenas por isso. Entram também na liquidação porque a maioria dos donos do dinheiro quer se livrar de ativos de risco (de preço muito variável). As Bolsas caem de modo exorbitante, em um pânico ora sem fim, o que acaba nas manchetes. Mas o buraco vai muito mais para baixo.

Bancos, empresas financeiras e empresas em geral se financiam no grande atacadão de dinheiro dos mercados financeiros americanos, mais do que nos bancos. O que é esse mercado?

Exemplos.

Instituições financeiras variadas levantam dinheiro de curtíssimo prazo por meio de uma operação que, na prática, é um empréstimo em que a garantia são títulos do Tesouro americano (“repurchase agreementes”, “repos”, “operações compromissadas”). Esse mercado está com negócios mais ou menos travados faz pelo menos uma semana —é um atacadão que gira mais de trilhão de dólares.

Sem esse dinheiro, quem não pode pegar emprestado para pagar uma outra “dívida” ou cobrir um prejuízo, quebra ou tem de vender outros ativos, piorando a liquidação. O banco central dos Estados Unidos, o Fed, entrou no mercado emprestando trilhões a fim de cobrir o buraco.

De quais outros ativos financeiros se trata? As empresas americanas levantam dinheiro de curto prazo por meio de “commercial papers” (notas promissórias). Esses papéis são negociados no atacadão de dinheiro. Alguém que emprestou o dinheiro repassa o crédito (esses títulos privados) adiante. Quando a maioria está com medo, deixa de comprar esses papéis ou apenas os compram na xepa, na liquidação.

Isso quer dizer exatamente que as taxas de juros para as empresas subiram (quando alguém investe no Tesouro Direto com uma taxa de juros maior que a de ontem, para o mesmo título, está comprando um título mais barato).

Bancos estavam comprando essas notas promissórias a preço de liquidação. De uma semana para cá, pelo menos, preferiram se livrar deles. Por quê? Porque podem perder ainda mais valor, por exemplo, ou porque querem ficar com ativos mais seguros. Na verdade, querem ficar com dinheiro ou quase-equivalentes.

Como os bancos não encontram compradores suficientes para os “commercial papers”, passaram a vender títulos de longo prazo do Tesouro americano, que assim ficaram mais baratos (as taxas de juros subiram também), provocando mais perdas noutras partes do mercado.

Grandes investidores em “commercial papers” são fundos de investimento. Esses fundos não estão comprando o papel ou estão vendendo ativos para evitar perdas e cobrir os saques dos cotistas, vamos dizer assim, grosso modo.

Algo similar acontece no mercado de títulos do mercado imobiliário (papéis que rendem o que é pago por compradores de imóveis). Empresas emprestam dinheiro para o comprador de imóvel; para levantar dinheiro e emprestar mais ou por outro motivo, repassam esses empréstimos, os vendem na forma de títulos (lastreados em hipotecas, “mortgage backed securities”, MBS). Esse mercado também azedou. Mais gente comprando do que vendendo eleva a taxa de juros para o financiamento de imóveis.

Então, empresas que precisam agora levantar ainda mais dinheiro, dada a perspectiva de paradão da economia, pagam mais caro. A crise vai virando bola de neve.

Mais empresas recorrem então aos bancos, que precisaram de mais reservas para operar. O Fed liberou dinheiro. Mas também parece agora haver estresse no mercado de empréstimos de curto prazo entre bancos (que ficaram bem mais caros do que empréstimos do mesmo prazo para o governo americano, o que não é usual).

Quem se lembra de um pouco da crise de 2008 talvez reconheça alguns dos termos deste texto. A origem da crise é diferente, mas o estresse em vários mercados é semelhante.

O Banco Central americano, na prática, vai entrar no mercado de empréstimos para empresas, o que oficialmente, em tempos normais, não é autorizado a fazer. Isto é, o Fed vai imprimir ainda mais dinheiro a fim de tentar reduzir a asfixia de empresas financeiras e do mundo “real”. Como disse sarcasticamente a economista Maria da Conceição Tavares na crise da década passada: “O Fed vai descontar duplicatas”.

Talvez evite degringolada ainda maior. O problema de base é que ainda não se sabe o tamanho da recessão, da quebradeira das empresas, dos calotes e, pois, dos valores das dívidas. Todo mundo vai para a retranca, o crédito seca, os juros sobem, o que coloca mais gasolina no incêndio. Logo, outro bombeiro precisa acudir: o governo precisa gastar, dando dinheiro a desempregados, adiando impostos de empresas, o diabo.

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