- O Globo
O panelaço de ontem à noite mostra que o presidente já perdeu uma parte razoável de seu eleitorado na classe média
Foi deprimente assistir ao presidente da República, fantasiado com uma máscara medicinal que lhe caía a todo o momento da face, tentar distorcer a realidade, transformando sua irresponsabilidade em ação para tranqüilizar a população.
Diante deste quadro dantesco da pandemia do Covid-19, vem o presidente Bolsonaro dizer que sempre se preocupou com o povo, e por isso foi apertar as mãos de seus correligionários. Não é possível aceitar tamanha desfaçatez, sobretudo porque ele mente em várias dimensões.
Disse que sabia que não estava infectado, quando o exame de contraprova só foi feito no dia seguinte à manifestação. Garantiu que não há vídeo mostrando que convocara a reunião, quando sua fala em Roraima foi mostrada em jornais televisivos e circula pela internet.
Jair Bolsonaro aproveitou a coletiva de imprensa sobre coronavírus para fazer não uma autocrítica, mas um auto-elogio de seu governo, pedindo aplausos para si mesmo, o “técnico” de “um time que está ganhando de goleada”. E insistiu no erro, ao alertar: “Não se surpreenda se você me ver (sic), nos próximos dias, entrando no metrô lotado em São Paulo ou na barcaça Rio-Niterói”.
Mesmo admitindo que a pandemia é grave, disse que o país já enfrentou problemas mais graves no passado sem tanta repercussão na mídia, mas não deu exemplos. Para todos os líderes mundiais, a pandemia do Covid-19 é a mais grave de uma geração.
“Minha obrigação de chefe de Estado é antecipar os problemas e levar a verdade que não ultrapasse limite do pânico”, alegou desajeitadamente.
O panelaço de ontem à noite nas principais cidades do Brasil, que fora precedido por outro, na terça-feira, mostra que o presidente Bolsonaro já perdeu uma parte razoável de seu eleitorado na classe média.
O sinal que essa manifestação nos dá é de que o apoio ao presidente hoje é apenas de uma minoria radical. O panelaço foi parte fundamental para a criação do clima favorável ao impeachment da ex-presidente Dilma, e é uma demonstração de protesto da classe média, que começa a considerar que o governo não está atendendo às necessidades do momento.
Com as atitudes que tomou em relação ao coronavirus, Bolsonaro demonstrou claramente que não é preparado para a presidência da República. Na hora em que ele coloca o país em risco porque demora a tomar providências, fingindo que é tudo fantasia da grande mídia, chega-se à conclusão de que o presidente está fora da realidade.
Tanto assim que minimizou panelaços, e convocou outro a seu favor, mais uma vez para tentar confundir. Ao distorcer a realidade para mitigar a frustração que vem provocando em vasta parte do eleitorado que já se arrepende de tê-lo como presidente, que já se reflete nas redes sociais e nas pesquisas de opinião, Bolsonaro mostra que tem apego apenas a seus interesses eleitorais.
Esse cinismo facilmente desmascarado nos tempos atuais, em que tudo é registrado em qualquer lugar do mundo pelos novos meios, só faz aumentar o repúdio a um tipo de político que usa o povo em seu benefício. Ele é um péssimo exemplo, e se transforma num perigo à saúde pública além de ser agressivo, polêmico e ter dividido o país.
É de dar engulhos ouvirem-se seguidas mentiras da boca daquele que deveria representar o respeito às leis e a responsabilidade social, especialmente neste momento em que, além dos problemas inerentes à pandemia, vemos escancarada nossa desigualdade social extrema, que nos traz mais graves dificuldades para cuidar da saúde pública.
A rápida disseminação do vírus Covid-19 ameaça a todos, mas principalmente aos mais pobres, que moram amontoados em comunidades sem esgotamento sanitário ou limpeza pública. Esses precisam, além do dinheiro que o governo acertadamente vai distribuir, do exemplo do presidente da República para resistirem a esses tempos muito duros que temos pela frente.
Não precisamos de um espetáculo patético de ministros mascarados sem necessidade, só para fazer fotos.
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