terça-feira, 31 de março de 2020

O que a mídia pensa - Editoriais

A pedra no caminho – Editorial | O Estado de S. Paulo

Graças a seu comportamento irresponsável, Jair Bolsonaro começa a conquistar um lugar jamais ocupado por um presidente brasileiro, o de vilão internacional

O presidente Jair Bolsonaro foi reconhecido pela revista norte-americana The Atlantic como “o líder mundial do movimento de negação do coronavírus”. Já a revista britânica The Economist chamou Bolsonaro de “BolsoNero”, numa alusão à lenda de que o imperador Nero tocava harpa enquanto Roma ardia em chamas. E o presidente brasileiro foi o único chefe de Estado citado nominalmente pela The Lancet, uma das principais publicações científicas do mundo, em editorial crítico às respostas de muitos governos à pandemia, especialmente aqueles que “ainda precisam levar a ameaça da covid-19 a sério”.

Assim, Bolsonaro, graças a seu comportamento irresponsável, começa a conquistar um lugar jamais ocupado por um presidente brasileiro – o de vilão internacional. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, idolatrado por Bolsonaro, persistiu em sua costumeira arrogância diante do avanço dramático da epidemia, rendendo-se à necessidade de prorrogar o isolamento social, mesmo ante o colossal custo econômico dessa medida.

Aparentemente, contudo, Bolsonaro não se importa de ser visto como pária. Ao contrário: decerto feliz com a notoriedade global subitamente adquirida, na presunção de que isso lhe trará votos, insiste em desafiar abertamente as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), adotadas pelo Ministério da Saúde e por governadores e prefeitos de quase todo o Brasil. No domingo passado, o presidente passeou por Brasília, visitando zonas comerciais, pedindo que a vida volte ao normal e cumprimentando simpatizantes que se aglomeravam em torno dele – escarnecendo, assim, de reiteradas recomendações de seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Como se isso não bastasse, Bolsonaro ainda postou em sua conta oficial no Twitter vídeos e imagens que atestavam sua descarada irresponsabilidade. Ao fazê-lo, conseguiu outra proeza: tornou-se o primeiro presidente brasileiro a ter postagens suspensas pelo Twitter, por negar ou distorcer orientações das autoridades sanitárias na luta contra uma epidemia. O Twitter, aparentemente disposto a conter o vírus da desinformação, já havia feito o mesmo em relação a postagens do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, e do chanceler Ernesto Araújo.

O temerário passeio de Bolsonaro por Brasília – apenas um dia depois de o ministro Mandetta ter enfatizado a necessidade do rígido isolamento social, pois, do contrário, “vai faltar atendimento para rico e para pobre” – demarcou definitivamente a fronteira que separa o presidente do resto do mundo civilizado. Bolsonaro hoje só governa o território habitado por seus fanáticos devotos.

Nesse país de valentões, em que a ciência e a razão são tratadas como inimigas, o presidente diz que “é preciso enfrentar o vírus como homem, pô, e não como moleque” – e, no léxico bolsonarista, “moleque” é quem defende quarentena contra a epidemia, para salvar vidas e evitar o colapso do sistema de saúde. Já “homem” é ele, o presidente, que repta o bom senso e escancara sua demagogia ao cogitar de acabar com o isolamento social por decreto: “Estou com vontade, eu tenho como fazer, estou com vontade: baixar um decreto amanhã” para permitir a volta ao trabalho de quem precisa “levar o leite dos seus filhos, arroz e feijão para casa” – ou seja, todo mundo. Se milhares de pessoas morrerem por falta de atendimento médico em decorrência dessa irresponsabilidade, “paciência”, disse o presidente, pois, afinal, “um dia todos vamos morrer”.

Não à toa, o governador de São Paulo, João Doria, pediu aos paulistas que ignorem Bolsonaro: “Não sigam as orientações do presidente, ele não orienta corretamente a população e, lamentavelmente, não lidera o Brasil no combate ao coronavírus e na preservação da vida”. Já o ministro Mandetta, desautorizado tão escandalosamente pelo presidente da República, pediu paciência à sua humilhada equipe e, conforme apurou a jornalista Eliane Cantanhêde, do Estado, citou para seus comandados o poema No Meio do Caminho, de Drummond – aquele do verso “No meio do caminho tinha uma pedra”.

O vírus do corporativismo – Editorial | O Estado de S Paulo

Os ‘jabutis’ incluídos em projetos concebidos para tentar preservar os paulistanos da covid-19

Nem mesmo a tragédia causada pelo avanço da pandemia do novo coronavírus (covid-19) vem conseguindo deter a praga do corporativismo que viceja em todas as instâncias e setores da administração pública. O exemplo mais recente da força dessa praga está no projeto de lei de emergência enviado pelo prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), à Câmara Municipal, pedindo autorização para liberar R$ 5 bilhões do orçamento com o objetivo de reforçar as ações da Secretaria da Saúde da cidade mais populosa do País.

Originariamente, o projeto previa que esse montante viria da receita de 11 fundos municipais, entre eles os constituídos por recursos vindos de multas de trânsito. Atualmente, estes fundos têm um saldo estimado de R$ 2 bilhões, cada um. No caso de os R$ 5 bilhões não serem suficientes, o projeto pedia autorização para a Prefeitura usar recursos de uma outra conta separada – a relativa a operações urbanas – para financiar obras de infraestrutura.

Bem recebidas pelos especialistas em infectologia, essas medidas foram aprovadas pela Câmara em uma semana. Durante a tramitação do projeto, porém, alguns vereadores aproveitaram a oportunidade para incluir no texto dispositivos que nada tinham que ver com saúde pública, mas que atendiam a demandas corporativas do funcionalismo municipal. Conhecidas como “jabutis” no jargão parlamentar, algumas dessas emendas foram aprovadas, apesar de imorais.

Apresentada sob a justificativa de assegurar aos servidores municipais “o direito à mais ampla defesa”, a emenda mais acintosa foi a de autoria do próprio presidente da Câmara, vereador Eduardo Tuma (PSDB). Ela altera o funcionamento da Controladoria-Geral do Município, órgão encarregado de fiscalizar o funcionalismo da Prefeitura, concedendo a servidores investigados no plano administrativo por irregularidades e corrupção uma instância a mais de recurso antes de uma eventual punição. Esse “jabuti” prima por duas imoralidades. Em primeiro lugar, a nova instância não é composta só por membros da corregedoria, mas, também, por secretários municipais, muitos dos quais são políticos profissionais. Por isso, em segundo lugar, o que deveria ser um julgamento técnico, com base no direito administrativo e penal em vigor, acabará sendo uma decisão em que prevalecerão conveniências políticas e partidárias. Como foi aprovado por 31 votos, esse “jabuti” abrirá caminho para que servidores em cargos de chefia na máquina municipal promovam compras sem licitação, por exemplo, com a certeza de que não serão punidos. A consequência inevitável será a desmoralização da Controladoria-Geral do Município.

Ainda que não tenha sido aprovada, outra emenda imoral foi a que tentou incluir no texto do projeto uma forma disfarçada de aumento salarial. Ela também foi apresentada por Eduardo Tuma, desta vez em coautoria com a vereadora Sandra Tadeu (DEM). Esse “jabuti” permitia ao servidor municipal incorporar aos seus salários os valores recebidos por exercício de cargo de chefia por mais de cinco anos. A emenda foi apresentada sem que seus autores encaminhassem uma avaliação do impacto que ela acarretaria nas contas da Prefeitura.

Expresso por emendas como essas, o corporativismo infelizmente não se limita à apropriação da coisa pública, à troca de favores e à contemporização com o mau uso do dinheiro público e com a corrupção. Vai muito além. Neste momento em que o novo coronavírus mata, o corporativismo prima pelo descolamento da realidade, pela insensibilidade moral e pelo desrespeito aos mais elementares princípios éticos.

Evitar quebradeira, desafio imediato – Editorial | O Estado de S. Paulo

Falta garantir que a ajuda chegue às firmas menores e com menos crédito

Sair do buraco será mais fácil, depois da crise, se o governo conseguir evitar uma quebradeira e uma nova devastação do emprego. Metade das grandes empresas poderá enfrentar até três meses sem receita, mas boa parte das micro, pequenas e médias mal consegue, sem vendas, sobreviver 30 dias. Quase 40% das grandes poderão ficar sem caixa no segundo mês. Os cálculos são do Centro de Estudos de Mercado de Capitais (Cemec) da Fipe e da consultoria Economática, informou ontem o Estado. Governo e Banco Central (BC) têm apresentado medidas para garantir alguma renda aos trabalhadores e expandir o crédito. São iniciativas corretas, avaliam respeitados economistas, mas é preciso ir mais longe, porque os desafios são muito maiores que os de qualquer crise anterior.

O governo tem de cuidar ao mesmo tempo de duas missões – preservar milhares de vidas ameaçadas por um vírus e limitar, tanto quanto possível, os danos econômicos da pandemia. São missões indissociáveis. Aumentar o risco de contágio para reativar os negócios seria uma experiência autodestruidora, como ficou claro em outros países.

Descartado esse erro, a defesa da economia será mais eficiente se a equipe econômica tiver uma avaliação clara das condições das empresas. O trabalho do Cemec-Fipe pode ser um bom começo. O quadro das grandes companhias foi baseado nos balanços de 2019 de 245 empresas de capital aberto.

O estudo simula a evolução das condições financeiras com paralisação de receitas. Em dois meses, 48,6% apresentariam saldo de caixa negativo, enquanto pouco mais da metade teria fôlego para continuar pagando fornecedores, folha de salários e outras despesas operacionais. Mesmo no caso das grandes, portanto, são limitadas as condições de segurança. “A situação das pequenas e médias é outra história, bem mais problemática, e exigirá medidas consistentes para evitar quebradeira”, comentou o coordenador do Cemec-Fipe, professor Carlos Antonio Rocca, ex-secretário de Fazenda de São Paulo.

Além de piores condições de caixa, as micro, pequenas e médias empresas têm dificuldade maior de acesso ao crédito, como lembram o professor Rocca e o presidente da Trevisan Escola de Negócios, VanDyck Silveira. Um dos efeitos dessa dificuldade, em 2019, foi o aumento das contas em atraso. A inadimplência das empresas cresceu por 11 meses seguidos. Em janeiro um recorde foi estabelecido, com 6,2 milhões de firmas com contas atrasadas e nome negativado. Em um ano a expansão chegou perto de 10%.

Desse total, 94,2% são micro e pequenos negócios, segundo o economista Luiz Rabi, da Serasa Experian. Um crescimento econômico de apenas 1% ao ano, observou, nem chega aos pequenos negócios.

Esse tem sido o padrão desde 2017, com ligeira piora em 2019 e, agora, um quadro de severa contração. Detalhe agravante: como 30% das dívidas em atraso são com outras empresas, há um efeito cascata.

Oitenta por cento dos empregos dependem dessas empresas, lembra VanDyck Silveira. A pandemia, segundo ele, poderia pôr na rua mais 5 milhões, levando a quase 17 milhões o total de desocupados. A taxa seria próxima de 16%. O risco de uma grande piora surge também nas contas do economista-chefe da Genial Investimentos, José Márcio Camargo, professor da PUC-RJ. Se a economia se contrair 3,2%, como em seu cenário básico, o desemprego poderá chegar a 14,3% no fim do ano, em termos dessazonalizados.

Ampliar o apoio às empresas, principalmente às micro, pequenas e médias, é recomendação unânime dos analistas mais atentos ao dia a dia do setor privado. Medidas de crédito já anunciadas são basicamente corretas, mas nada garante que o dinheiro chegará às empresas mais necessitadas. José Márcio Camargo sugere a criação de um fundo, com recursos do Tesouro, para garantir empréstimos dos bancos públicos às menores empresas. O País ganharia se o governo se dispusesse a ouvir este e outros economistas conhecedores do mundo real das empresas e do emprego, dando uma folga temporária aos amigos da corte.

Recuo de Trump fragiliza Bolsonaro na epidemia – Editorial | O Globo

Brasileiro citava presidente americano ao defender um isolamento social menos rígido

O passeio que o presidente Bolsonaro deu no domingo por Brasília e arredores foi do ponto de vista político a repetição do discurso que fez em rede nacional contra a estratégia seguida por seu Ministério da Saúde de conter a epidemia da Covid-19 por um isolamento social mais amplo. Conforme indicação da OMS, confirmada pela experiência da China no enfrentamento do coronavírus e pelos desdobramentos da pandemia principalmente na Itália, Espanha e agora nos Estados Unidos.

O presidente mais uma vez descumpriu normas de precaução estabelecidas pelo seu ministro Luiz Henrique Mandetta e equipe, cumprimentando pessoas na rua, o que facilita a transmissão do vírus. Bolsonaro voltou a falar da preocupação com o desemprego causado pelo isolamento, deixando em segundo plano o risco absoluto de contaminação em grandes proporções, causa de uma inevitável elevação em escala geométrica no número de infectados e de mortos, causando um choque, este sim, incontrolável na economia.

Foi o mesmo descuido com o isolamento, à exceção dos quadros em atividades vitais — saúde, segurança, transportes, por exemplo —, que levou Itália e Espanha a ultrapassarem na semana passada a marca dos 3.300 mortos atingidos na China, país com população bastante maior. Na rota do Oriente para o Ocidente, o Sars-CoV-2, nome deste novo coronavírus, entrou nos Estados Unidos de forma arrasadora, concentrando-se nos últimos dias no estado de Nova York, castigando com dureza sua principal cidade. O registro de caminhões frigoríficos para guardar cadáveres e da construção de um hospital de campanha nos gramados do Central Park mostra a gravidade da crise de saúde pública.

Até o presidente Trump, em campanha para a reeleição, e que resistia a ampliar o isolamento, previsto para acabar no dia de Páscoa, 12 de abril, reviu a posição, estendendo a quarentena até o final de abril. O presidente anunciou a medida no domingo, quando foi atingida a marca de 2.300 mortes. Como Trump, o presidente do México, López Obrador, também um populista, recuou.

Bolsonaro ficou sozinho. Não poderá dizer mais que Trump segue a linha dele. O presidente americano, ao contrário do colega brasileiro, demonstrou que ouve quem entende do assunto. Foi decisivo para Trump recuar mais um alerta que lhe fez — este ele levou a sério, ao contrário de outros — Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas: poderão morrer até 200 mil americanos. Antes, Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, também descrente do perigo, recuou ao ouvir algo semelhante dos especialistas do Imperial College de Londres. Ele mesmo é vítima do coronavírus.

Bolsonaro, por sua vez, age sob o comando de redes de grupos de radicais, a começar pelos filhos, gente há tempos desconectada da realidade e que vive numa bolha de paranoia. Em uma situação grave como a atual, voltaram os rumores de demissão do ministro da Saúde, por insistir que o ministério está do lado da “Ciência e do planejamento”, como repetiu ontem na entrevista coletiva diária de sua equipe. Desta vez, com a presença, entre outros, do chefe da Casa Civil, Braga Netto, que chefia o comitê de coordenação do combate à epidemia. Mandetta, ao reafirmar sua correta posição, se fortalece como ponto de referência quando o país começa a entrar na fase crítica da epidemia.

Fake news contaminam as redes e prejudicam combate ao vírus – Editorial | O Globo

Áudios criticam medidas de isolamento e disseminam mentiras sobre formas de contágio

Na mesma velocidade com que o novo coronavírus se propaga, as fake news se disseminam pelas redes, causando tanto mal quanto o Sars-CoV-2, à medida que prejudicam o combate à epidemia, para a qual não há remédio ou vacina. Como mostrou o “Fantástico”, da Rede Globo, no domingo, áudios têm espalhado mentiras sobre a doença. Um deles diz: “As medidas de contenção na Itália já mostraram que não deram resultado. Faz 15 dias que a Itália está parada, e faz 15 dias que não param de subir as mortes”.

No entanto, o infectologista Alberto Chebabo, ouvido pelo programa, disse que as medidas na Itália foram tomadas muito tardiamente, quando a epidemia já estava disseminada. De fato, havia muitos que consideravam desnecessário adotar restrições drásticas. Um deles, o prefeito de Milão, Giuseppe Sala, apoiou, no fim de fevereiro, a campanha “Milão não para”. No dia 22, em meio ao luto coletivo pelas mortes que já se contam aos milhares, se desculpou publicamente pelo erro fatal.

Um outro áudio reproduzido pelo “Fantástico” estimula os mais jovens a irem para as ruas: “Quem é saudável e tem idade para aguentar e ser imune vai trabalhar”. No entanto, no sábado, o ministro da Saúde, Henrique Mandetta, defendeu as medidas de isolamento e explicou que mesmo crianças e adolescentes não devem ir à escola, porque, ainda que sejam assintomáticos, poderiam contaminar outras pessoas.

O pesquisador Pablo Ortellado e equipe, que estudam grupos públicos no WhatsApp, afirmam ter detectado um aumento desses áudios a partir do dia 24 de março, após pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro em que ele criticou as medidas de contenção.

Esse contágio das redes sociais pelas fake news prejudicando o controle de doenças não surgiu com a epidemia do novo coronavírus. Nos últimos anos, campanhas de vacinação têm sido vítimas das mentiras. O que provoca estragos nas taxas de imunização.

Agora, o fenômeno cresce. Falsos conselhos, falsos remédios, falsas vacinas. São falácias, mas que podem influenciar cidadãos a relaxarem nas medidas de contenção recomendadas pela OMS e pelas autoridades de saúde. Informação confiável deve ser buscada no jornalismo profissional. Fora dele, é preciso estar sempre atento ao vírus da mentira que corre nas veias da rede.

Dispersão de energia – Editorial | Folha de S. Paulo

Bolsonaro dá certa autonomia a alas mais sensatas da gestão, mas sabota esforços

O mês de abril, que começa nesta quarta, é o período que vem sendo considerado pelos epidemiologistas como o mais crítico para a disseminação do novo coronavírus no Brasil e seu consequente impacto no sistema de saúde do país.

O governo decretou estado de calamidade pública no dia 20 passado, mas até agora não logrou obter uma ação coordenada.

Quatro dias antes, um colegiado com o nome de Comitê de Crise para Supervisionamento e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 fora montado, em nível ministerial, apenas para ser esvaziado.

No meio tempo, o que se viu foi o presidente Jair Bolsonaro agarrar-se ao papel de garoto-propaganda de uma forma perigosa de negacionismo da gravidade da doença.

A cena deprimente do mandatário máximo entre comerciantes do Distrito Federal no domingo (29) é nova marca de um período em que ele se dedicou a fazer pirraça contra a comunidade científica ao chamar as medidas de isolamento social de exageradas.

Sem amparo técnico, distribuiu a setores do governo a ordem de defender o dito isolamento parcial, que não tem histórico de funcionalidade no mundo até aqui.

Convocou em rede nacional a população a exigir o direito de ir trabalhar, mesmo que sob risco de contaminação. Até uma campanha publicitária foi ensaiada.

No meio da balbúrdia, algumas vozes no plano federal tentam dar racionalidade à gestão da crise, a começar pelo ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde.

Ele é reconhecido por governadores como o único elo com a União no processo decisório. Sua atuação, contudo, mostra-se mais difícil a cada dia. Após pedir comedimento ao chefe na véspera, foi atendido com a exibição de domingo.

No campo econômico, que representa o outro eixo de ações emergenciais na calamidade, o ministro Paulo Guedes parece ter organizado melhor as ações após o episódio da medida provisória que permitia a dispensa de funcionários sem salário por quatro meses, revisada logo em seguida.

Seu pacote de medidas ainda avança aos solavancos, mas está claro que sua pasta reconhece a gravidade da situação e não endossa a pauta doidivanas do Planalto.

Na área política emerge a voz dissonante do vice-presidente, o general Hamilton Mourão. Em entrevista à Folha neste domingo, ele demonstrou ponderação ao tratar da conjuntura, com os devidos cuidados para não confrontar abertamente Bolsonaro.

Ao mesmo tempo em que dá alguma autonomia às alas mais sensatas do governo, o presidente sabota seus esforços. O arranjo, talvez o possível a esta altura, implica enorme dispersão de energia.

Pesquisa capenga – Editorial | Folha de S. Paulo

Governo mostra visão indigente do fazer científico ao fixar critérios para verba

Duas decisões recentes, tomadas no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia e da Capes, órgão de fomento ligado à pasta da Educação, aprofundam equívocos da administração Jair Bolsonaro a respeito da pesquisa científica.

A primeira, publicada em portaria do ministério, estabelece as áreas que deverão ser priorizadas, de 2020 a 2023, no que tange à alocação de recursos para projetos.

A listagem contempla apenas campos tecnológicos e aplicados, deixando de lado as ciências humanas e sociais, bem como as ciências básicas. Se, no primeiro caso, o documento apenas reafirma a notória repulsa ideológica do governo às humanidades, no segundo revela-se uma visão estreita e mal informada do fazer científico.

A ciência organiza-se numa espécie de linha contínua que vai das áreas puramente teóricas àquelas voltadas estritamente à resolução de problemas concretos. Ao privilegiar apenas as últimas, o ministério parece ignorar a relação inextricável entre estas e as primeiras.

Tome-se a decifração da estrutura de dupla hélice do DNA, ocorrida em 1953. Seria, à primeira vista, um típico caso de busca do conhecimento pelo conhecimento. A descoberta, porém, tornou-se uma das bases da biotecnologia moderna, com aplicações nas áreas de saúde e energia e nas indústrias química e alimentar, entre outras.

As falhas da portaria se devem, talvez, à maneira como foi elaborada, sem consulta à comunidade científica, como apontaram entidades em carta ao ministério.

O mesmo expediente foi seguido nas mudanças efetuadas pela Capes nos critérios de distribuição de bolsas de pesquisa. Um mês após introduzir um novo sistema, a agência, de forma inexplicável, alterou novamente as regras.

Agora, os programas podem perder até 50% das bolsas que possuíam, ante o limite de 10% no regramento anterior. De um dia para o outro, milhares de pós-graduações se viram com um número menor de bolsas do que o esperado, com prejuízo não apenas para o planejamento anual como para os estudantes que iriam recebê-las.

A iniciativa mereceu amplo rechaço, que incluiu o dos 49 coordenadores de área da própria Capes, bem como as associações universitárias e as entidades científicas.

Somadas, ambas as medidas têm o potencial de desestabilizar o sistema de pesquisa e pós-graduação erigido nas últimas décadas. Devem ser revistas o quanto antes.

BC reforça o arsenal para destravar os empréstimos – Editorial | Valor Econômico

A previsão de que o crédito cresceria 7% neste ano foi cortada para 4,8%

Depois de ter injetado bilhões de reais no mercado financeiro sem resultado significativo na oferta de crédito como pretendia, o Banco Central (BC) voltou à carga e anunciou novas medidas. Tudo indica que um dos principais entraves para que os bancos reabram as torneiras do crédito foi afastado com o anúncio de que o Tesouro vai assumir a maior parte do risco de operações de financiamento de folha de salários de pequenas empresas. Espera-se assim que elas ganhem fôlego para os próximos dois meses, que devem ser o pior período da paradeira econômica causada pelo coronavírus.

O BC começou a abrir sua caixa de ferramentas no início da semana passada quando anunciou a liberação de depósitos compulsórios, a redução de exigências de capital e a oferta de linha de redesconto, sinalizando um aumento da liquidez de R$ 1,2 trilhão, cinco vezes mais do que foi em 2008. Naquele ano, quando as ondas de choque disseminadas pelo estouro da bolha do subprime nos Estados Unidos contagiaram o mundo todo, o BC liberou o equivalente a 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Na crise atual, o montante subiu para 16,7% do PIB.

Alguns detalhes ilustram a amplitude do pacote. Com a redução dos requerimentos de capital, os bancos passam a dispor de R$ 102 bilhões. Em compulsório sobre depósitos a prazo, são liberados mais R$ 68 bilhões, que se somam aos R$ 49 bilhões injetados uma semana antes. Mais R$ 89 bilhões virão com a flexibilização das regras prudenciais de liquidez de Basileia 3, que obrigam os bancos a manter ativos líquidos nos balanços.

Foram adotadas também algumas medidas para tentar resolver problemas do mercado de capitais, em que fundos pressionados por resgates crescentes não conseguiam vender os papéis da carteira no mercado senão com profundas perdas. Ao menos um fundo chegou a suspender os resgates, causando forte estresse. Para tentar resolver o problema, o BC criou uma linha de até R$ 91 bilhões de empréstimo aos bancos garantido por debêntures na expectativa de que ajudem a oferecer liquidez ao mercado secundário, propiciando condições para a formação de preços. Também foi aumentado o limite de recompra de letras financeiras (LFs) de emissão dos próprios bancos, de 5% para 20%, títulos que estão em boa parte nessas carteiras.

Apesar disso tudo, as empresas menores, seguiam se queixando que os bancos estavam com o crédito travado, certamente preocupados com seu futuro com propensão a um encolhimento. Pior, alguns haviam elevado a taxa de juros cobrada dos que precisavam renegociar as dívidas. Por isso, o BC dobrou as fichas ao anunciar na sexta um acordo que envolve os bancos privados para o financiamento da folha de salário das empresas. O Tesouro vai assumir 85% do risco de crédito da operação, os bancos ficarão com os 15% restantes e terão a palavra final na aprovação do tomador dos recursos.

Executivos de bancos entrevistados pelo Valor acreditam que a linha vai reativar as operações de crédito. Uma contrapartida exigida da empresa para receber o crédito é não demitir o empregado. Podem se candidatar ao crédito empresas com faturamento de R$ 360 mil a R$ 10 milhões. Os recursos vão custar o equivalente à taxa Selic, 3,75% ao ano, com seis meses de carência e 30 de prazo.

O BC destinou R$ 40 bilhões para a linha, divididos em duas parcelas de R$ 20 bilhões para cada um dos próximos dois meses. Os detalhes de funcionamento estão sendo elaborados, mas a ideia é que o Tesouro repasse o dinheiro para o BNDES, que os transferirá aos bancos. Representantes das pequenas empresas elogiaram a iniciativa, mas se queixam que o volume é pequeno. Pelos cálculos do BC, a medida tem alcance potencial de 1,4 milhão de empresas e 12,2 milhões de empregados, um terço dos 4,3 milhões de empresas formais. O financiamento só vai contemplar pagamento de até dois salários mínimos e a empresa terá que arcar com a diferença, se existir.

A movimentação do governo pela melhoria das condições de liquidez e de crédito ainda inclui a maior atuação dos bancos públicos, que deixarão de lado a fase de encolhimento de balanços, em resposta a uma situação excepcional. Ainda assim, a expectativa é que o crédito frustre as previsões otimistas. O próprio Banco Central revisou para baixo as projeções para o ano. A previsão de que o crédito cresceria 7% neste ano foi cortada para 4,8%. No entanto, leva em conta um PIB de variação zero, estimativa hoje considerada otimista por dez entre dez economistas.

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