- O Estado de S.Paulo
Se a Constituição de 88 ampliou a proteção à saúde, não fez o mesmo com a renda
“Instituir uma renda mínima para todas as famílias brasileiras.” O leitor pode se surpreender, mas uma renda universal era uma das propostas do plano de governo oficial do candidato Jair Bolsonaro. Com adeptos em diversas ideologias, o debate sobre renda universal ganhou força nos últimos dias, na esteira da aprovação do auxílio emergencial de R$ 600 pelo Congresso – destinado a trabalhadores informais prejudicados pela crise.
Ela é conhecida à direita pela proposta de “imposto de renda negativo” do ícone liberal Milton Friedman, que advogava que famílias abaixo de um nível de renda não deveriam pagar imposto, mas receber transferências até alcançar o nível determinado. E é conhecida da esquerda pela Renda Básica de Cidadania, proposta histórica de Eduardo Suplicy aprovada no Congresso em 2004 – o “direito de todos os brasileiros receberem anualmente um benefício monetário”. Jamais foi implementada.
Nos Estados Unidos, chamou a atenção quando Hillary Clinton, fazendo a autópsia da sua candidatura presidencial, alegou que quase anunciou a renda universal como sua plataforma eleitoral contra Trump. Teria desistido por não conseguir desenhar a implementação. Nas primárias democratas deste ano, o tema não animou os candidatos mais progressistas, mais focados em políticas de mercado de trabalho.
A renda universal ainda não foi adotada em país algum, pelo seu custo proibitivo. Como alternativa, muitos prescrevem algo mais viável e focalizado: a renda garantida. Trata-se de um benefício só para quem vive abaixo de um limite de renda, em valor suficiente para que esse mesmo limite seja superado.”
Esse é o caso do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso: R$ 600 para quem vive com menos de meio salário mínimo. Rigorosamente, ele não seria então uma “renda universal” ou uma “renda básica”, porque não é destinado a todos. É mais próximo do imposto negativo do que do benefício de Suplicy. É como um Super Bolsa Família, embora a nova roupagem ajude a superar o estigma que essa transferência de renda aos muito pobres têm.
Propostas de fato universais foram discutidas pelo Congresso recentemente, para grupos específicos da população: o benefício universal infantil, aprovado pelo Senado, é voltado às crianças. Já na Câmara, o deputado Pedro Paulo, no âmbito da reforma da Previdência, apresentou proposta da “renda básica universal” para o idoso e pessoas com deficiência.
O debate expõe uma fragilidade da Constituição de 1988. Se ela conseguiu ampliar a proteção à saúde, que deixou de ser direito somente dos trabalhadores com emprego formal e carteira assinada, não fez o mesmo com a proteção à renda. Os benefícios aos formais custam na ordem de R$ 800 bilhões por ano, e a crise da covid-19 evidencia como larga parcela da população vive vulnerável e sem contar com esses recursos.
O modelo constitucional deixa tanta gente às margens que se estima que mais da metade da população brasileira pode ser beneficiada direta ou indiretamente pelo auxílio emergencial aprovado ontem – voltado a informais e desempregados sem seguro-desemprego.
Mesmo no melhor momento do mercado de trabalho no fim de 2014, o emprego formal era escasso para jovens, nordestinos, mulheres, negros e brasileiros com ensino médio incompleto. Mesmo então, esses grupos ficavam às margens da proteção da Carta Cidadã e da festejada legislação trabalhista. A carteira de trabalho é um homem branco paulista.
Para além da realidade desnudada pela pandemia, esse arcabouço também é desafiado pela tendência estrutural trazida pela transformação tecnológica. A CLT e a proteção trabalhista e previdenciária são baseadas ainda em um modelo industrial, de vínculos estáveis e homogêneos, com jornadas fixas e voltado para um único provedor no domicílio – o homem pai de família. O novo modelo, mais heterogêneo, exigiria um arcabouço mais amigável à formalização e proteção dos grupos mais vulneráveis: talvez com uma reforma do instituto do microempreendedor individual (MEI).
O MEI foi criado no governo Lula e expandido no governo Dilma e pode acabar fazendo mais pela inclusão no mercado de trabalho e proteção à renda do que a própria reforma trabalhista. Afinal, a erradicação da pobreza e da marginalização é talvez o principal fim da Constituição de 88. O auxílio emergencial da pandemia durará três meses: ao seu término, a sociedade ainda terá um encontro marcado com essa questão.
*Doutor em economia
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