- Valor Econômico
Talvez o choque da covid-19 venha a ser dos mais didáticos sobre a relação da sociedade com a natureza
O mês que ora se encerra deveria ter sido de celebração da luta feminista. Em vez disto, poderá ser lembrado, por muito tempo, como um dos mais tenebrosos da história econômica do capitalismo. Com certeza, marco de recessão mais profunda do que aquela que se seguiu à crise de 2008. Com chances de resultado muito pior aumentando a cada dia, diz o notável especialista Nouriel Roubini.
Mas também parece possível que o choque da covid-19 venha a ser dos mais didáticos sobre a relação da sociedade com a natureza. Principalmente se lições já evidentes tiverem o poder de mudar comportamentos. A grande dúvida é se esta adversidade poderá incitar o andar de cima, formado pelo quinto mais rico da população mundial, a iniciar uma desintoxicação de seus modos de vida. Não se trata, portanto, de cenário alternativo, otimista ou realista. Tão somente de também chamar a atenção para bons efeitos colaterais, mesmo que se confirme o cenário mais pessimista.
As despoluições - principalmente sonora e do ar - poderão ser incentivos para que muitos, das classes médias e altas, não voltem aos mesmíssimos esquemas quotidianos depois da crise. Já disparou a procura online por casas fora das cidades. E a comparação das imagens de março às anteriores, divulgadas pela Nasa e pela ESA, não poderiam ser mais eloquentes em sugerir o grau de melhora dos ecossistemas globais quando o desenvolvimento humano puder se basear em mudança qualitativa do crescimento econômico.
É provável que aumente o número de pessoas do andar de cima que já se inclinam a estilos de vida mais sóbrios, em vez de consumistas. Os resultados das sondagens em países desenvolvidos permitem supor que, na segunda metade do século passado, esta parcela da população possa ter saltado, por lá, de 3% para 35%. Chamado de “culturalmente criativo”, este grupo social ainda está longe de alcançar os estáveis 50% dos “modernistas”, mas já ultrapassou bastante a fatia dos “tradicionalistas”, que ruiu de 47% para 15%. Só nos países desenvolvidos, claro.
Tudo indica que tais tendências estejam sendo acompanhadas, com grande atraso, pelo pensamento econômico. Em momentos de crise, como o atual, a larga maioria dos economistas “modernistas” dá um tempo à ortodoxia neoclássica para abraçar o keynesianismo. Nem em 2008 tantos haviam virado a bandeira, de modo tão amplo, geral e quase irrestrito.
Será ótimo se muitos deles também vierem a temperar tão súbita conversão keynesiana com uma pitada de teoria shumpeteriana, pois as restrições - distanciamento social, isolamento, confinamento, lockdown, shutdown, quarentena e toque de recolher - já resultaram em extraordinário momento de destruição criativa, captado com perspicácia pela pergunta: “mais falidos que falecidos”? Já parecem inviáveis muitos dos negócios que não tenham agilidade suficiente para operar no mundo digital.
Tamanha aceleração na passagem ao virtual é outro efeito secundário benigno, pois poderá ser muito pedagógico sobre uma eventual desmaterialização da economia. Há muito se torce pelo aumento da eficiência ecológica dos padrões de produção e consumo, com menos recursos naturais e impactos ambientais por unidade de produto.
Quase sempre identificados a um “decoupling” (descasamento ou desacoplamento), os avanços têm sido pífios, em grande parte por serem debochados pelos economistas a serviço do andar de cima.
Agora, ao menos haverá bons exemplos sobre quais seriam as melhoras ambientais, mesmo que, fornecidos, é pena, por decrescimento quase completo, em vez da trajetória “decrescer crescendo”.
Não é outro o centro dos debates sobre a relação entre sociedade e natureza, até aqui vilipendiados por ortodoxos, keynesianos, schumpeterianos e afins. Para remar contra tal corrente, a primeira recomendação é o livro “Enfrentando os Limites do Crescimento”, organizado por Philippe Léna e Elimar Nascimento (Garamond: 2012).
Mostra bem a necessidade de se ir além, dando-se mais atenção às ideias simultaneamente lançadas, em meados dos anos 1960, por Kenneth Boulding (1910-1993) e Nicolas Georgescu-Roegen (1906-1994), criativamente reformuladas, na virada para os 1970, por Herman Daly (1938-). Esta trinca lançou teses que por muito tempo permanecerão heterodoxas, mas que, mesmo assim, poderão ajudar muito no entendimento da mutação econômica avistada em março de 2020.
Panorama bem mais atual da evolução das ideias econômicas nos últimos trinta anos, com interessantes especulações sobre o que poderá acontecer nos próximos trinta, acaba de ser proposto por um dos principais economistas do grupo “culturalmente criativo”, Robert Costanza. A opção preferencial de ampla maioria dos australianos por cenário de “bem-estar comunitário”, contra o de “negócios, como sempre” (Futures 107, p. 119-132), foi tão animadora que - apesar da triste história eleitoral do país - o levou a prognosticar a virada ecológica ainda para a primeira metade do século XXI. E o fez entre junho e setembro de 2019, bem antes deste fatídico mês de março (Ecological Economics 168: 106484).
*José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP
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