Um governo de outro mundo – Editorial | O Estado de S. Paulo
Danos econômicos já se espalham por todo o mundo, produzidos pela epidemia de coronavírus, mas o governo brasileiro tem-se comportado como se estivesse em outro planeta. O crescimento mundial poderá cair de 2,6% em 2019 para cerca de 1% neste ano, segundo o Instituto de Finanças Internacionais (IIF), formado por 500 dos maiores grupos financeiros do mundo. No Brasil, já há quem projete expansão abaixo de 2% para o Produto Interno Bruto (PIB). Exportadores de petróleo voltaram a rebaixar a demanda mundial esperada para este ano, enquanto a Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata) calcula perdas entre US$ 63 bilhões e US$ 113 bilhões, em 2020, para a indústria da aviação civil. Mas os brasileiros deveriam ficar tranquilos, garantiu na quarta-feira, em Brasília, o ministro da Economia, Paulo Guedes.
O Brasil, segundo ele, está longe de ser “uma folha ao vento do comércio internacional”. Além disso, o País avança, de acordo com o ministro, em sentido oposto ao do resto do mundo. “Agora o mundo começou a desacelerar e nós estamos reacelerando – estamos fora de fase com eles.”
Se o ministro falou, essa deve ser a posição oficial de seu Ministério e também do governo, mas nem dentro do Ministério há entendimento. Isso é evidenciado pela confissão do secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, em palestra ontem de manhã. “Durmo preocupado”, disse ele, “por não saber o que vai acontecer com o crescimento do mundo. A gente sabe o que é a China crescendo 6%, 7% ao ano. Não sabe o que é a China crescendo 3% ao ano. Que vai acontecer com o mundo num cenário de crescimento baixo, em que ainda se está numa fase de recuperação? Assusta.” O Brasil, lembrou o secretário, também é afetado pela piora mundial.
Talvez seja impossível, neste momento, uma resposta precisa à interrogação do secretário do Tesouro. Mas toda resposta sensata é por enquanto preocupante, segundo os economistas de instituições financeiras e das principais consultorias. O Banco Fibra reduziu de 2,6% para 1,8% o crescimento do PIB estimado para 2020. A projeção do Banco Safra foi diminuída de 1,9% para 1,6%. A da LCA Consultores foi rebaixada de 2,3% para 1,9%. A da XP Investimentos foi revista de 2,3% para 1,8%. O crescimento esperado para o Brasil foi mantido em 1,7% pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em relatório divulgado na segunda-feira. De toda forma, a previsão para a economia brasileira já era baixa no documento anterior, publicado em novembro.
Para o PIB global a estimativa da OCDE passou de 2,9% para 2,4%, mas, se a epidemia for pior do que pareceu inicialmente, a expansão mundial poderá ficar em cerca de 1,5%. O cálculo divulgado pelo IIF já incorpora, portanto, uma avaliação mais dramática da nova emergência sanitária. O crescimento próximo de 1% será o mais fraco desde a crise de 2008. O instituto mudou de 2% para 1,3% a expansão prevista para a economia americana e de 5,9% para 4% o aumento esperado para o PIB chinês.
A epidemia também motivou a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) a reduzir de novo a projeção da demanda global. Pelas contas do fim de 2019, a procura mundial de petróleo teria um acréscimo de 1,14 milhão de barris/dia neste ano. O crescimento agora esperado é de 480 mil barris/dia.
Enquanto as preocupações atrapalham a bolsa, jogam o dólar para cima e levam o mercado a rever projeções, o ministro da Economia parece habitar outro mundo, ao contrário do secretário do Tesouro. Não é normal, segundo o secretário, um país como o Brasil crescer 1%, como no ano passado.
Em São Paulo, o ministro Guedes disse ontem esperar uma expansão de 2% em 2020 e reafirmou a aceleração nacional. O Brasil, afirmou, é pouco vulnerável às flutuações externas, por ser uma economia fechada. Além disso, atribuiu à Secretaria de Política Econômica a projeção de 2,4% para este ano. A dele, insistiu, sempre foi de 2%. Curiosamente, a tal secretaria é subordinada ao ministro Paulo Guedes.
Enfim, um acordo – Editorial | O Estado de S. Paulo
Após um acordo com o governo, o Congresso manteve vetos do presidente Jair Bolsonaro ao Projeto de Lei Orçamentária. Com isso, o Executivo retomou o controle sobre cerca de R$ 30,1 bilhões do Orçamento – mas, pelo que ficou acertado, o governo aceitou dividir com o Congresso a decisão sobre o destino de parte desse montante, cerca de R$ 19 bilhões. Manteve-se praticamente intacto o acordo que havia sido anteriormente costurado pelos articuladores do governo com o Congresso, que ameaçava derrubar os vetos presidenciais e impor uma dolorosa derrota para Bolsonaro. Mas o clima ficou pesado depois que o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, queixou-se de que o Palácio do Planalto estava sendo “chantageado” pelos parlamentares na negociação e estimulou manifestações de rua contra o Legislativo. O presidente Jair Bolsonaro reclamou, então, que estava se transformando em “refém” do Congresso e demandou um novo acordo – ao mesmo tempo que divulgava em uma de suas redes sociais a convocação de protestos contra os parlamentares, chamados de “inimigos do Brasil”.
O desfecho aparentemente evitou um confronto aberto entre o governo e o Congresso, o que pode ajudar a desanuviar a atmosfera pesada que se verificou nas últimas semanas. Nada impede que as manifestações, marcadas para o próximo dia 15, voltem a acirrar os ânimos contra o Congresso, mas por ora o que se tem é um acordo concreto – o que, na conturbada relação do governo de Bolsonaro com o Congresso, é uma grande e boa novidade.
No momento em que os indicadores mais importantes sinalizam uma recuperação mais lenta da economia, em meio a uma desvalorização acentuada do real e ao risco de que a epidemia de coronavírus afete a produção local, é relevante que o governo e o Congresso tenham se empenhado para superar suas divergências sobre o Orçamento. É possível que o horizonte sombrio da economia tenha chamado as autoridades à razão e inspirado o pragmatismo. O jogo de empurra entre Bolsonaro e os parlamentares a respeito da responsabilidade sobre o mau andamento das reformas, com a ampliação das incertezas para os investidores e os cidadãos em geral, pode servir para excitar as redes sociais, mas tende a ser um jogo prejudicial ao País.
No caso do Orçamento, é justo que o governo questione seu alijamento quase total do processo de tomada de decisões sobre a alocação de recursos; do mesmo modo, é também razoável que o Congresso reivindique maior autonomia para estabelecer as prioridades orçamentárias. Tanto num caso como no outro, contudo, é lícito indagar quais são os projetos concretos que animam essa busca pelo controle dos recursos.
Da parte do governo, até agora são obscuros os planos para melhorar a capacidade produtiva do País nos seus diversos aspectos. Em pouco mais de um ano de mandato, Bolsonaro não foi claro a respeito de suas prioridades – e não foram poucas as ocasiões em que o presidente deu muita importância ao que não tem nenhuma.
Da parte do Congresso, é também difícil saber quais são as prioridades, em especial porque não se divisam programas claros em meio à barafunda de partidos que não passam de siglas vazias de ideologia e sentido. Por ora, a liderança do Congresso comprovou suas credenciais reformistas, mas esse perfil pode mudar assim que houver troca de comando, no final deste ano.
Esse ambiente de indefinição, diante da perspectiva de degradação ainda maior do quadro econômico, deve servir como advertência para as autoridades e as lideranças políticas: não se pode perder mais tempo com disputas que só se prestam a fomentar narrativas eleitoreiras, sem qualquer ganho significativo para o País. Está na hora de estabelecer negociações amplas com vista à aprovação das reformas, pois, do contrário, em pouco tempo não haverá mais nada pelo que brigar.
Catástrofe na Baixada Santista – Editorial | O Estado de S. Paulo
As recentes tempestades na Baixada Santista já deixaram pelo menos 28 mortos, mais de 40 desaparecidos e quase 500 desabrigados. Neste verão, só no Sudeste as chuvas já mataram mais de 140 pessoas – 70% a mais do que no verão passado. Dados da Defesa Civil apontam que a região já conta com mais de 87 mil pessoas desabrigadas ou desalojadas. Por mais excepcional que tenha sido o volume das chuvas nas últimas semanas, esses números catastróficos sinalizam a urgência de se rever drasticamente os protocolos de contingenciamento, assim como as políticas habitacionais em zonas de risco.
Como disse o pesquisador Ivan Carlos Maglio, do programa Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, estes extremos meteorológicos são o “novo normal”. “A gente sabe que isso vai acontecer de novo. É preciso adaptar inclusive obras de infraestrutura, como ruas, estradas, sistemas de drenagem, a essa nova realidade. Para as comunidades em áreas de risco, é urgente que se façam planos de gerenciamento para evacuação rápida, tendo estruturas de prontidão para remover, socorrer e abrigar. Tem de retirar antes, não esperar a tragédia acontecer.”
Há um problema estrutural nas grandes cidades: a impermeabilização dos solos, que, além de eliminar a capacidade de absorção do excedente de água, cria ilhas de calor que acabam provocando precipitações mais fortes. É uma condição estrutural dificilmente solucionável.
Mas o grande risco está nas ocupações irregulares das encostas e margens de córregos. “Do ponto de vista geológico, a gente sabe onde podem acontecer os deslizamentos”, disse Maglio. “O problema é tirar as pessoas que estão lá. A saída é elaborar planos de adaptação climática, como está acontecendo em Santos. São projetos que preparam as comunidades para o risco e para minimizar os danos, principalmente perdas de vida.”
Esses programas fracassaram. Houve um plano de contingenciamento, com alertas e ações de evacuação, mas foi insuficiente. Além disso, em muitos casos, as pessoas alertadas se recusaram a sair. Mas condições extremas exigem medidas extremas. Por mais impopular que seja, o poder público precisa criar mecanismos legais e administrativos para garantir que as evacuações ocorram, mesmo que compulsoriamente.
Será preciso mais rigor no controle dos assentamentos irregulares. Não é mais possível tolerar o surgimento de novas ocupações, em particular nas áreas de risco. Em relação às existentes, quando não for possível a regularização, será preciso realizar um programa de desocupação e realocação. Sem dúvida é uma questão politicamente sensível, que trata de pessoas em condições de extrema vulnerabilidade social. Mas considerando o risco que essas ocupações oferecem aos moradores e mesmo às comunidades legalmente estabelecidas ao pé das encostas, além de outras partes das cidades, as autoridades não podem transigir.
Ontem, o Ministério de Desenvolvimento Regional reconheceu o estado de calamidade pública no Guarujá e situação de emergência em Santos e em São Vicente. De imediato, é preciso mobilizar os recursos disponíveis para acolher os desabrigados. Mas o poder público precisa urgentemente aprimorar os protocolos de contingenciamento, com avisos, sirenes, planos de evacuação e atendimento às vítimas. A médio prazo, é necessário organizar a evacuação dos habitantes das moradias irregulares localizadas nas áreas de risco.
As vítimas merecem toda assistência e solidariedade possível. Mas para evitar que elas se multipliquem, o governo e a opinião pública precisam estar prontos para adotar medidas extremas, quando necessárias. Isso inclui total intolerância com ocupações em áreas de risco e, em situações de emergência, a evacuação compulsória. Nestes casos excepcionais a compaixão não é permitir a ocupação de imóveis em áreas de risco – é conduzir seus habitantes para áreas seguras.
Bolsonaro não tem ideia da agenda de presidente – Editorial | O Globo
A confirmação de que a economia demora a reagir obriga o Planalto a só tratar de temas relevantes
Por mais que o presidente Bolsonaro tenha se esforçado para se esquivar de perguntas sobre o baixo desempenho da economia no ano passado, com a evolução do PIB se mantendo no nível decepcionante de 1%, a realidade de uma economia quase estagnada continua a existir e, cada vez mais, pressiona sua gestão.
A atitude que se espera do presidente é reagir à inércia que tomou conta do seu governo com respeito às reformas. Precisa reativá-las, uma resposta adequada à virtual estagnação da economia.
Isso requer o envolvimento direto do Palácio nas articulações com o Congresso, falha recorrente do governo Bolsonaro. O que faz aumentar as preocupações com o alheamento do presidente e as demonstrações de que não entende as suas funções.
Podia não ter encontrado a imprensa na quarta-feira, dia da divulgação do PIB de 1,1%, se não queria falar sobre o assunto. Mas na porta do Alvorada decidiu ir ao encontro dos repórteres com uma performance debochada e desrespeitosa, em que um humorista com faixa presidencial saiu do carro oficial para oferecer bananas aos jornalistas. Transformou o Palácio em circo.
Bolsonaro constrói com eficiência a imagem de alguém que não está à altura do cargo. Mostra não entender a dimensão da agenda presidencial. Dela consta não apenas apressar as reformas, como também resistir a pressões que devem surgir para abandonar o ajuste fiscal, a fim de supostamente acelerar a retomada da economia com mais gastos públicos.
O presidente deveria fazer uma reflexão profunda sobre as razões para atrairmos tão pouco investimento externo. Concluirá que parte da explicação está na imprevisibilidade do seu comportamento, fator de aumento da percepção de risco pelo investidor. Um país em tensão política constante, devido ao seu presidente, não é atraente a investidores em grandes projetos de longa maturação, como os de que o Brasil necessita, principalmente na infraestrutura.
Em encontro com os movimentos Vem pra Rua e Brasil Livre (MBL), o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, disse que o governo tem “15 semanas para salvar o Brasil”. Em referência à proximidade do calendário eleitoral, que paralisará o Congresso no segundo semestre.
Pode ter sido um exagero, mas é essencial de fato que Congresso e governo apressem os trabalhos pelo menos até o fim do semestre. A agenda está posta: além da reforma administrativa, ainda não enviada pelo governo, e a tributária, para a qual também falta a contribuição do Executivo, há PECs a aprovar também com urgência (a Emergencial e a dos Fundos Públicos).
Enquanto Bolsonaro perde tempo em patrocinar atos de desrespeito à imprensa, para animar uma plateia digital, há um expediente no Planalto à sua espera que não está sendo cumprido. O presidente precisa trabalhar, e para isso tem de desmontar o picadeiro eletrônico que armou à frente do Alvorada.
Ausência de saneamento é uma das causas das disparidades sociais – Editorial | O Globo
Além de uma educação pública falha, falta de tratamento de água e esgoto também gera pobreza
Não há uma causa única de o Brasil ser um dos países mais desiguais do mundo. Existe uma infinidade de explicações para a iniquidade, uma obra edificada durante muito tempo, por muitos governos de variadas tendências políticas. Há diagnósticos consensuais, como o do baixo padrão de grande parte do ensino público básico, que atende à massa dos jovens pobres. Com formação deficiente, eles serão eternizados nas faixas de renda baixa. A educação é uma usina de produção de pobres.
Mas há mecanismos menos visíveis, nem por isso menos eficazes, de geração de pobreza e de desníveis sociais. A grande disparidade entre a remuneração dos servidores públicos e a dos assalariados do setor privado é um exemplo. Os desníveis são perpetuados nos sistemas de aposentadoria, replicados na estrutura de incentivos tributários e em incontáveis outras regras, normas, políticas.
A anemia nos investimentos em infraestrutura, como no saneamento básico, não escapa à regra e também perpetua a pobreza. A falência de um sistema de regulação que privilegia as empresas públicas estaduais de água e esgoto é expressa em poucos números: 83,6% da população estão conectados à rede de água tratada e apenas 53,2% têm o esgoto coletado. Só agora há uma chance concreta de o Congresso rever esta regulação para que empresas privadas possam ampliar sua participação na atividade.
Conforme mostrou reportagem do GLOBO, este quadro indigente do saneamento no Brasil adoece as pessoas, geralmente as mais pobres, o que afeta a sua capacidade de trabalho e prejudica a já baixa produtividade da economia brasileira. Como tudo está interligado, calcula o Instituto Trata Brasil que se forem feitos investimentos anuais médios no setor de R$ 20 bilhões até 2036, o impacto positivo, por exemplo, em saúde, educação, produtividade do trabalho e turismo pode chegar a R$ 1,12 trilhão em duas décadas. As cifras impressionam. É importante destacar a capacidade de uma estrutura eficiente de saneamento gerar ganhos para a sociedade. O tema está em questão no projeto em debate no Congresso.
Com ele, há a expectativa de que se abra, enfim, mais espaço para empresas privadas, que atuam pouco no setor, apesar de apresentarem geralmente índices de eficiência superiores aos das empresas públicas.
A possibilidade de o capital privado participar das licitações a serem abertas pelo poder público, para a concessão dos serviços de água e esgoto, é um ponto forte deste projeto.
Reação corporativa – Editorial | Folha de S. Paulo
Servidor enfrenta com truculência a necessária reforma previdenciária paulista
O governo João Doria (PSDB) viu aprovada, na terça (3), a reforma previdenciária para o funcionalismo do estado de São Paulo pela Assembleia Legislativa. O texto avança sobre alterações mais pontuais que vigiam desde 2011.
Foi um processo turbulento de meses, com inúmeras altercações pouco republicanas entre deputados estaduais, protestos violentos de categorias afetadas e um impasse judicial por fim solucionado pelo Supremo Tribunal Federal.
Medidas do gênero são sempre impopulares, como o placar da votação em segundo turno da proposta de emenda à Constituição estadual mostrou: 59 a 32, apenas dois votos acima do mínimo necessário para a aprovação do texto.
Elas também são, quase invariavelmente, necessárias. Pelas contas do governo, em três anos o gasto com inativos superaria o destinado a funcionários que trabalham. Hoje, os contingentes quase empatam, com 592,5 mil na ativa e 478 mil aposentados e pensionistas.
No ano passado, gastos previdenciários consumiram R$ 34,7 bilhões, ou 14,5% do Orçamento do estado. É um volume superior aos dispêndios com educação (R$ 30 bilhões), saúde (R$ 22 bilhões) ou segurança pública (R$ 19,8 bilhões), para ficar em três áreas fulcrais.
O rombo na manutenção dessa despesa, pela insuficiência atual das contribuições, chega a R$ 27,7 bilhões. Assim, a reforma atacou pontos usuais para tentar mitigar o problema, fazendo crescer alíquotas pagas pelos servidores de 11% para uma média de 14%, em regime progressivo aprovado em lei complementar.
Também foram aumentadas as idades mínimas e alteradas exigências de tempo de serviço, atingindo categorias com regras diferenciadas, como policiais e professores.
Não por acaso, servidores da educação se mostraram os mais vocais adversários da reforma. No dia da votação, integrantes da área protagonizaram uma confusão que deixou, segundo a oposição, 20 feridos no embate com a Polícia Militar.
Também foram professores que fizeram uma paralisação ao longo do dia e esperam mobilizar uma greve do serviço público estadual no dia 18.
Se lograrem tal feito, algo que a reforma federal aprovada em 2019 não provocou, os mestres terão a difícil missão de explicar a seus alunos por que desejam a manutenção de privilégios enquanto o resto da população está submetida à nova realidade.
Se é óbvio que professores não preferem ficar em casa e tomar suco de laranja, como Doria disse numa frase deveras infeliz, é certo que a lição do compartilhamento de fardos na adversidade precisa ser compreendida e compartilhada.
A carta de Regina – Editorial | Folha de S. Paulo
Atriz, que assume sob tensões, tem missão de pacificar área cultural do governo
Passado o período de noivado, conforme a expressão que as duas partes empregaram, sacramentou-se na quarta-feira (4), enfim, o casamento entre a atriz Regina Duarte e o governo Jair Bolsonaro.
Artista de longa e reconhecida carreira, Regina passa a comandar a gestão da cultura, área que ficou marcada até agora por turbulências, embates ideológicos, intervenções de extração autoritária e sucessivas trocas de comando.
O primeiro a ocupar a secretaria especial destinada ao setor, Henrique Pires, deixou o cargo em agosto, acusando o governo de censura, após a suspensão de um edital que contemplava séries com temática LGBT. Seu substituto, o economista Ricardo Braga, permaneceu poucas semanas no posto.
Na sequência, o órgão teve à frente o diretor de teatro Roberto Alvim, com seu delirante projeto de “guerra cultural” contra a esquerda.
O desvario foi interrompido em janeiro, após a veiculação de um grotesco vídeo no qual ele aparecia repetindo trechos de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler, em meio a outras alusões ao nazismo.
Diante desse histórico deplorável, afigura-se sem dúvida auspiciosa a intenção de Regina, manifestada em seu discurso de posse, de trazer pacificação à área e manter constante o diálogo com setor cultural, sociedade e Congresso.
Já de início, a atriz procedeu a uma ampla e sem dúvida necessária limpeza nos postos da secretaria, incluindo nomes ligados ao ideólogo-mor do obscurantismo bolsonarista, Olavo de Carvalho.
O caminho para debelar do órgão o revanchismo e compor uma equipe comprometida com as reais necessidades do setor, contudo, não estará livre de obstáculos.
Talvez já antevendo dificuldades, Regina sublinhou, em seu pronunciamento, a promessa presidencial de que teria “carta branca” para escolher os integrantes da secretaria.
Falando na sequência, porém, Bolsonaro deixou claro que não abrirá mão de intervir numa área que sua paranoica militância enxerga como dominada pela doutrinação de esquerda.
Tais falanges, a propósito, desde já se unem a radicais de esquerda no ataque à atriz nas redes sociais —num movimento açulado por Carvalho, que, diante da demissão de seus seguidores, passou a provocá-la a desistir do cargo.
Por sua trajetória, Regina Duarte parece reunir qualidades necessárias para ao menos apaziguar o setor e conter a irracionalidade da gestão governamental. Todavia, como se vê, o sucesso desse casamento não dependerá apenas dela.
Falta um plano para tirar a Argentina da recessão – Editorial | Valor Econômico
Fernández faz o velho jogo político dos peronistas, alinhado a Cristina, dão a impressão de que trabalham no curto prazo, sem plano de voo
A Argentina está no limbo nos mercados internacionais desde a posse da dupla peronista, Alberto Fernández e Cristina Kirchner, que substituiu o liberal Mauricio Macri. Já durante a campanha eleitoral ficou claro que o novo governo não pagará sua enorme dívida externa (93% do PIB) se a economia não crescer. Mas o que o novo governo fará para que a economia cresça permanece uma incógnita - mesmo após o aguardado discurso de Fernández no Congresso, feito na abertura do ano legislativo, no domingo.
O discurso de Fernández não afastou os piores temores sobre os rumos que pretende dar ao país. Em linha coerente com a visão populista de Cristina Kirchner - responsável pela herança maldita legada a Macri, à qual ele acrescentou seus próprios erros - Fernández deu a entender que a alta inflação argentina (52,9% em doze meses) é fruto da ganância dos empresários. Em reunião com empresários do setor de alimentos, ontem, voltou a bater na mesma tecla e a criticá-los - a cesta básica subiu 57,3% em doze meses encerrados em fevereiro. “Não é possível que, com a moeda estabilizada e as tarifas congeladas, o que inclui combustíveis, o preço dos alimentos continue crescendo”, disse ao Congresso.
O maior problema imediato do governo é o que fazer com a dívida externa. Mas falta um plano de ação para a economia que a contemple. Fernández parece continuar em campanha, fazendo discursos de palanque. Não há nada de muito estranho no caso, para um país que teve uma megadesvalorização cambial e que insiste em acordo com empresários para controlar preços (os “preços cuidados” de uma lista de dezenas de itens). A concertação de preços, tão ao gosto dos governos argentinos, mais uma vez não dará certo. A conclusão de Fernández é que “temos de acabar com a Argentina dos espertos, que enriquecem à custa dos pobres ‘bobos’ que estão condenados a pagar o que consomem”.
Durante boa parte dos governos Kirchner, a quem Fernández serviu, as tarifas públicas foram congeladas - e desde junho, com Macri, continuam assim. É uma receita para o fracasso, mas a avaliação crítica não foi feita. Não se sabe quando e como as tarifas serão afinal descongeladas, se é que o serão.
O descontrole fiscal, a outra face do explosivo endividamento externo e dos sucessivos calotes, é uma das raízes da crônica inflação argentina. Os déficits são alimentados por uma série de subsídios, distribuídos pelos governos Kirchner por mais de uma década. Macri tentou eliminá-los, parou no meio do caminho e tentou ser populista para se reeleger - tarde demais. Fernández não disse o que vai fazer, mas sabe o que não quer fazer: “Há quem nos critique e peça mais ajuste”, disse. “Não percamos de vista que não há alternativa pior do que a austeridade fiscal nas recessões. Não vamos pagar a dívida à custa da fome e da destruição dos sonhos dos argentinos”.
Como em outros calotes, o governo levanta suspeitas sobre a dívida externa, maneira oblíqua de justificar um calote. Segundo Fernández, o Banco Central está examinando o assunto. “Vimos impávidos como os dólares que deveriam financiar o desenvolvimento produtivo” saíram do país via sistema financeiro, apontou. Durante a eleição, Fernández disse que o dinheiro do FMI - que emprestou US$ 47 bilhões - serviu para bancar a mais cara campanha eleitoral do país, a de Macri, sugerindo conluio da instituição contra os peronistas - paranoia e mistificação ao mesmo tempo.
Fiel à tradição centralizadora e burocrática do peronismo, o presidente, ainda sem planos, anunciou uma coleção de conselhos. Criará o Conselho Econômico e Social para o Desenvolvimento (parecido com o antigo Conselhão brasileiro), que orientará as políticas de Estado. Ele coabitará com o Conselho para Afiançar a Administração da Justiça e com o Conselho Nacional de Assuntos Relativos às Ilhas Malvinas.
O governo mudará o funcionamento da Justiça - a vice-presidente Cristina, com uma dezena de inquéritos por corrupção, indicou correligionários em postos-chave no ministério e na Receita. O objetivo, segundo Fernández, é impedir que “discricionaridade judicial substitua as normas do direito”. Delitos contra a administração pública envolvendo funcionários do Estado “deixarão de estar nas mãos de poucos juízes” e “passarão a ser julgados por mais de meia centena de magistrados”. Suspeita-se que assim não serão julgados. Fernández faz o velho jogo político dos peronistas, está alinhado a Cristina nisso e ambos dão a impressão de que trabalham no curto prazo, sem plano de voo.
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