- Revista Época
Desconectados desse corpo de pesquisas científicas, muitos economistas ainda pensam que a retomada será linear e monotônica
Tem demorado para que a realidade seja absorvida: a pandemia alterou completamente os rumos da economia, e essa mudança não é temporária. Melhor dizendo, o tempo da pandemia e de seus efeitos na economia não é o tempo que muitos fantasiam que seja. Falo em fantasia porque, a cada novo estudo científico sobre a Covid-19 que é publicado, aparecem críticas apressadas e interpretações equivocadas deles, em lugar de revisões e reflexões. A vítima mais recente da pressa de criticar foi o artigo publicado na revista Science por cientistas da Universidade Harvard. O estudo, além de trazer modelos epidemiológicos, traça cenários a partir do que se sabe até o momento — e reconhece que há muito que ainda não se sabe. Apesar disso, ele rapidamente se tornou alvo de repúdio por ter exposto com clareza uma realidade: a de que o vírus ficará conosco por muito tempo — no melhor dos cenários, até 2022.
Até lá, entre o que se sabe e o que ainda não se sabe — o tempo da pesquisa científica não é o tempo nem da vontade nem dos afetos —, o mais provável é que se tenha de conviver com períodos de quarentena intermitente. É dizer, para não sobrecarregar os sistemas de saúde na ausência de vacinas e tratamentos eficazes, além de dúvidas sobre a imunidade adquirida, prevalecerá um quadro de vaivém para as medidas sanitárias. Tal quadro terá implicações diretas na retomada da economia, quando conseguirmos sair da fase mais aguda da crise.
Contudo, o que a quarentena intermitente implica é que a retomada só poderá ocorrer em zigue-zague: quando as medidas sanitárias puderem ser relaxadas, a economia respirará mais livremente; quando a epidemia recrudescer, a quarentena será adotada novamente para a administração de seu impacto nos sistemas de saúde. Nessas circunstâncias, a retomada econômica será volátil, fugindo da ideia de monotonicidade que se costuma presumir.
O comportamento da economia que se pode prever com base no conhecimento científico sobre a epidemia de sars-CoV-2, o vírus causador da Covid-19, deveria ter diversos desdobramentos de política econômica. Primeiramente, ele justifica adotar uma renda básica permanente, como tenho insistido há várias semanas, inclusive neste espaço. A renda básica será de suma importância para dar cobertura às pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, sobretudo em um cenário de quarentenas intermitentes. Como também tenho discutido, há vários outros motivos para defender a adoção da renda básica, os quais transcendem essas necessidades. A quarentena intermitente é apenas uma razão adicional.
Para além da renda básica permanente, há o tema da reconversão industrial. O estudo da Science que mencionei no início da coluna mostra que, se conseguirmos aumentar a capacidade de resposta dos sistemas de saúde, será possível espaçar as quarentenas intermitentes. Quanto mais espaçadas elas ficarem, menos volátil será a retomada da economia. Como se aumenta a capacidade dos sistemas de saúde? Uma resposta é com a reconversão de fábricas para a produção de equipamentos médicos como respiradores, aventais, máscaras e todo tipo de proteção para os profissionais de saúde. É bom lembrar que, além dos profissionais de saúde, enquanto o vírus estiver conosco, precisaremos de máscaras e luvas para a população em geral. Portanto, é difícil enfatizar suficientemente a importância da reconversão industrial não apenas neste momento de crise, como também na fase de retomada.
Por fim, para auxiliar o esforço de reconstrução econômica, precisaremos investir em infraestrutura. Um elemento fundamental para a luta contra doenças infecciosas e para o meio ambiente é o saneamento básico, cujo acesso é extremamente limitado no Brasil. Precisamos desenhar desde já a agenda de investimentos públicos para atender às necessidades do Brasil que surgirá desta crise.
O esforço é grande, mas não é impossível. Parece impossível apenas para aqueles que resistem a usar a imaginação e insistem em se escorar em corrimões, para se segurar a um passado que já deixou de existir.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
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