sexta-feira, 17 de abril de 2020

Humberto Saccomandi - Distanciamento social continuará entre países

- Valor Econômico

Numa pandemia, o estrangeiro vira uma ameaça

Algumas semanas de pandemia bastaram para reverter décadas de um dos processos mais relevantes da globalização: a movimentação inédita de pessoas pelo planeta. É pouco provável que esse movimento volte a ser o que era, ao menos num futuro próximo. O mundo ficará mais pobre e mais nacionalista, o que não ajudará as viagens. O isolamento, ao menos entre os países, vai durar. E terá impacto econômico.

As últimas décadas foram sem precedentes em termos de viagens. Nunca o ser humano se deslocou tanto pelo planeta, por lazer, estudo, trabalho ou por necessidade, que é o caso das migrações forçadas por conflitos, como na Síria, ou por desastres econômicos, como na Venezuela.

Os países receberam em 2018, segundo dados do Banco Mundial, 1,44 bilhão de turistas estrangeiros. No início do século, em 2001, eram 690 milhões. As empresas aéreas transportaram 4,23 bilhões de passageiros em 2018, contra 1,65 bilhão em 2001. Foi um crescimento exponencial.

Porém, desde que a epidemia começou, quase todos os países adotaram restrições à entrada de estrangeiros. Mesmo na Europa, o acordo de Schengen, que prevê a livre circulação de pessoas dentro da União Europeia, foi na prática suspenso, e os países passaram a barrar a entrada dos vizinhos, algo inédito na Europa ocidental, desde a Segunda Guerra Mundial.

Estrangeiros não foram apenas barrados, mas hostilizados. Quando a epidemia ainda estava restrita à China, onde começou, houve em vários países casos de discriminação contra chineses.

Hoje, com a epidemia sob controle na China, isso se inverteu. A importante cidade chinesa de Guangzhou proibiu nesta semana a entrada de negros em restaurantes, após rumores nas redes sociais de que o coronavírus estaria avançando na comunidade africana. Um McDonald’s local se desculpou por ter de cumprir a ordem.

Além de barrar estrangeiros, os governos desaconselham seus cidadãos a viajar. Quem insistir, encontrará dificuldade, já que as companhias aéreas suspenderam quase todos os voos internacionais. Os países buscam ainda trazer de volta seus cidadãos que estão no exterior, o que inclui complexas operações. Na semana passada, a embaixada da Itália em Brasília recomendou aos italianos que deixem o Brasil “o mais rápido possível”, devido ao avanço da epidemia por aqui, apesar da situação pior na Itália.

A lógica por trás disso é que, numa pandemia, estar no seu país de origem é mais seguro. Estrangeiros raramente têm acesso a serviços de saúde pública no exterior. E seguros de viagem não costumam cobrir epidemias.

Há ainda o problema da quarentena forçada. Quando a entrada de estrangeiros não é proibida, os países estão exigindo quarentena, de 10 a 14 dias. Ao voltar ao seu país, a pessoa corre o risco de ficar em nova quarentena. Ou seja, uma viagem ao exterior implicaria ficar quase um mês parado.

Com a epidemia em pleno andamento na maior parte do mundo, não há chances de essas medidas de restrições a viagens serem revogadas. Pelo contrário, já há sinais de que essa situação pode continuar mesmo quando os países começarem a controlar o número de novas infecções.

A China, que vem relatando uma forte queda nos novos casos de covid-19 e busca passar uma imagem de normalização, proibiu no fim de março a entrada de estrangeiros no país, para tentar evitar uma segunda onda da epidemia. Isso apesar de Pequim ter criticado outros países quando estes proibiram a entrada de chineses.

O risco de novas ondas da epidemia advindas de casos importados continuará elevado por algum tempo, possivelmente até que se tenha uma vacina. Estudo da Universidade Harvard, publicado na última edição da revista científica “Science”, indica que deverá haver um vai-e-vem das medidas de isolamento até 2022, justamente pelo surgimento de novos surtos.

Um país que teve sucesso em conter a propagação precisa evitar importar casos de locais onde o vírus ainda prolifera. A diferença de estágio da doença entre os países fará com que sempre haja um com um surto mais avançado, que pode se espalhar para os demais.

Ao final, a doença persistirá nos países com mais dificuldade de combatê-la, os mais pobres, que tenderão a ser excluídos da movimentação internacional de pessoas por mais tempo. Isso pode ocorrer com o Brasil.
A tendência é que a permissão de entrada de estrangeiros seja, em geral, uma das últimas etapas do processo de normalização.

Nesse contexto, o estrangeiro vira uma ameaça. Esse sentimento está se espalhando, num período em que o nacionalismo já vinha avançando. Isso foi verbalizado pelo presidente americano, Donald Trump, que chegou a chamar o coronavírus de “vírus chinês” e de “vírus estrangeiro”.

A desvalorização das moedas nos emergentes e a perda geral de renda e de poupança tornarão as viagens inacessíveis para muitos.

Isso tudo vai, se não inviabilizar, pelo menos desencorajar vários tipos de viagens por um bom tempo. O desejo do ministro Paulo Guedes, de que as empregadas domésticas brasileiras deixassem de ir aos parques da Disney nos EUA, deverá ser realizado.

É difícil avaliar o impacto econômico, social e cultural dessa redução de movimentação das pessoas. Serão certamente afetados setores como turismo, transporte e educação. Enquanto a epidemia não for zerada no mundo, será improvável atrair passageiros para cruzeiros. O setor de feiras seguirá sofrendo.

Serão atingidos ainda setores que dependem de mão de obra estrangeira. Já faltam braços mexicanos nas colheitas nos EUA. Produtores britânicos estão trazendo de avião mão de obra do Leste Europeu, devido à falta de estrangeiros para a colheita de frutas e legumes.

Grandes empresas estão revendo a situação de funcionários expatriados. E, com a ampliação do uso de reuniões virtuais, é provável que viagens a trabalho também diminuam.

As fronteiras estão e devem continuar fechadas para refugiados e migrantes. Isso pode gerar crises humanitárias. Os imensos campos de refugiados pelo mundo serão alvos fáceis para o coronavírus. Quantos leitos de UTI há em Kutupalong, o maior campo de refugiados do mundo, em Bangladesh, onde estão abrigadas mais de 500 mil pessoas da etnia rohingya, que fugiram de Myanmar? Nenhum.

De certo modo, as políticas de distanciamento social continuarão valendo, ao menos em relação ao exterior. E quanto mais distante fica esse exterior no imaginário das pessoas, mais ameaçador ele se torna.

Nenhum comentário: