- Folha de S. Paulo
No mundo paralelo de Bolsonaro e Guedes, a realidade deve ser banida em nome da convicção
Luiz Henrique Mandetta não é mais ministro da Saúde. Jogo jogado. O embate mais importante em Brasília é outro. Já chego lá. Que caminho adotará Nelson Teich? Ou o país segue alinhado com a parte do mundo que adota graus variados de isolamento social ou escolhe a companhia de Nicarágua, Belarus e Turcomenistão, grupo no qual The Economist e Washington Post incluem o Brasil. O estrago do bolsovírus vai além de 2022.
Há outras escolhas a fazer. Ou o SUS mantém a sua vocação de sistema universal ou escolhe lançar velhos e outros vulneráveis ao mar de vírus e outras pestilências. Para o arrivismo ignorante de certo empresariado que trafica bugigangas também ideológicas e que faz a cabeça do presidente, o Brasil é bom demais para os seus pobres.
É certo que Mandetta cometeu erros, mas não caiu por causa deles. Foi a coragem de desconsertar, por meio do endosso ao distanciamento social, a irrealidade do "guedo-bolsonarismo" que o derrubou. Um certo "Uzmercádu" inventou um suposto Paulo Guedes iluminista em oposição ao Bolsonaro das trevas.
Esse bifrontismo nunca existiu. São uma mesma bolha de ineficiência, comprovada bem antes de o coronavírus nos assombrar. O patógeno só escancarou o engodo. A Economia está mais doente do que a Saúde. Querem ver?
A tal PEC do Orçamento de Guerra dá ao governo um cheque em branco. Defendi a medida, que ofereceu uma saída a um Guedes catatônico. Mas e os estados e municípios, que vão efetivamente tratar dos doentes? Eis a questão relevante.
A proposta de reposição do ICMS da Câmara é correta. A reposição das perdas segundo a arrecadação de igual período do ano passado é um critério objetivo. Arbitrários são os R$ 22 bilhões de Guedes. É mentira que sejam R$ 40 bilhões.
Os dias não andam fáceis. A arte da argumentação perdeu eficácia na era da afasia da razão, do anacoluto da lógica, da falência da objetividade. O governo diz rejeitar a proposta da Câmara porque não se vai lidar com um número fechado, já que não se sabe o tamanho da queda da arrecadação.
A menos que estejamos fazendo matemática no hospício, isso explica por que os deputados fizeram a escolha certa. Em essência, as despesas dos estados seguem sendo as mesmas, havendo pouca margem para corte nestes dias, com os brutais desembolsos adicionais, ainda incertos, decorrentes do combate ao coronavírus.
Os R$ 22 bilhões correspondem a 1/23 do total do ICMS de 2019. O desdobramento óbvio seria um só: Estados quebrados, com dificuldade de pagar policiais militares e profissionais de saúde. A república federativa iria para o lixo, restando o governo com o cheque em branco, sob o comando daquele que a Economist apelidou de "BolsoNero". O isolamento pode ter enlouquecido alguns. Prefiro a lucidez.
"Ah, mas os governadores, assim, podem usar esse dinheiro para praticar generosidades indevidas". O texto aprovado tem uma salvaguarda contra tal prática. Que seja reforçada se necessário. Mais: pretende-se impor, em meio ao caos, um ajuste de salários do funcionalismo nos estados, com corte ou congelamento.
A mão de obra essencial de atendimento aos doentes é estadual e municipal, não federal. É uma boa hora para esse debate? Gita Gopinath, economista-chefe do FMI, diz que não. Ela lembrou a necessidade de reformas, mas destacou que a prioridade é o combate ao vírus. Terá o FMI se deslocado excessivamente à esquerda?
Os estados estão sendo demonizados pelas lentes de um vidente que, há dois meses-- não dois anos--, apontava as virtudes de um dólar nas alturas, congratulando-se com o fato de que domésticas não mais podiam viajar à Disney. Sua primeira resposta à crise, há um mês, foi um pacote de rearranjo de dívidas, sem dinheiro novo, de R$ 147 bilhões.
Depois vieram as três parcelas de R$ 200 para informais e a MP que rompia contrato de trabalho sem compensação.
No mundo paralelo do guedo-bolsonarismo, a realidade deve ser banida em nome da convicção. O conservador Mandetta não cabe lá. Nem a matemática elementar.
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