- Valor Econômico
Em oito meses, o Brasil perdeu US$ 52,5 bilhões em reservas líquidas, um valor expressivo em termos absolutos
Queda do PIB, com a expressiva redução do emprego e do investimento, no contexto de uma pandemia mundial que ninguém sabe quando chegará ao fim, além de uma crise política que coloca em dúvida a capacidade administrativa do governo federal, configuram o cenário brasileiro de uma tempestade mais que perfeita. Seu impacto na área externa do país é significativo e tende a aumentar no curto e médio prazos.
O aumento no fluxo de saída das divisas estrangeiras, que abandonam o país diante das incertezas crescentes, reflete-se no acentuado declínio das reservas internacionais. A rigor, o saldo das reservas começou a declinar a partir de agosto do ano passado, quando o Banco Central sinalizou a continuidade do processo de redução da Selic, a taxa de juros de curto prazo que rege as operações de liquidez entre a autoridade monetária e as instituições financeiras no dia a dia. Aquela taxa caiu de 6% em agosto para 3% neste mês em termos nominais. A metade, portanto.
A sensação de que o país caminha para um estado de anarquia espanta os investidores estrangeiros
A consequência foi o desinteresse dos investidores estrangeiros pelo Brasil, em especial aqueles que gostam de ganhar dinheiro com operações de arbitragem entre juros e câmbio e que são a maioria. Em fim de agosto de 2019, o saldo das reservas internacionais pelo conceito de ativos estava em US$ 386,477 bilhões, enquanto que na mesma data as reservas medidas pela liquidez, ou seja, em divisa estrangeira conversível, eram de US$ 371,792 bilhões.
De lá para cá, o quadro sofreu drástica alteração. No fim de abril deste ano, as reservas medidas em ativos caíram para US$ 339,316 bilhões, ao passo que o saldo contabilizado como disponível em divisa estrangeira conversível foi de US$ 319,264.
Em oito meses, o Brasil perdeu US$ 52,528 bilhões em reservas líquidas, um valor expressivo em termos absolutos. As informações são do banco de dados do FMI, da sessão Reservas Internacionais e Liquidez em Moeda Estrangeira, atualizada no dia 08 de maio passado.
Vale aqui uma observação. As reservas internacionais pelo conceito de ativos (“Official Reserve Assets”) representa o somatório do valor das reservas disponíveis em divisa estrangeira conversível mais as aplicações em ouro, a posição do país como membro do FMI, as aplicações junto ao BIS (Bank of International Settlements, o banco central dos bancos centrais) e as operações em SDR (a moeda do FMI), além de outros tipos de ativos que não representam liquidez imediata. Diga-se, aliás, que este é o conceito que o Banco Central do Brasil divulga nas suas estatísticas para o público interno.
Um rápido paralelo que se faça com o comportamento da taxa de câmbio no mesmo período de oito meses - em agosto de 2019 a cotação do dólar vis a vis o real entrou definitivamente na casa dos R$ 4, tendo pulado para os R$ 4,50 no início de março, para R$ 5,30 no início de abril e para R$ 5,76 na sexta-feira passada, pelos dados do BC - mostra que a progressiva desvalorização da moeda nacional não é pura coincidência. Ontem, a taxa de câmbio comercial fechou a R$ 5,83, enquanto que no mercado de turismo, o dólar chegou a R$ 6,03. Percebe-se que a chegada da pandemia veio piorar o cenário, agravado sem dúvida pelas investigações que envolvem o presidente da República.
Toda essa movimentação que reflete o desinteresse do capital estrangeiro pelo país pode ser facilmente captada pelas informações do BC sobre as operações de contrato de câmbio. Desde agosto do ano passado os saldos positivos das operações cambiais relacionadas ao movimento da balança comercial (exportações menos importações) não têm sido suficientes para compensar os saldos negativos dos demais movimentos de câmbio, envolvendo as operações financeiras.
Entre agosto e dezembro de 2019, o total daqueles contratos, entre comercial e financeiro, representou drenagem de US$ 42,558 bilhões em recursos externos. Entre janeiro e abril deste ano, a saída de divisas representada pelos contratos foi de US$ 12,730 bilhões. Não foi pior porque desde fevereiro houve um considerável crescimento dos contratos do câmbio comercial, embora não suficientes para cobrir a posição negativa dos contratos do câmbio financeiro.
Tudo isso tem implicações monetárias. A saída líquida de recursos externos significa enxugamento de reais da economia. Só em março último, pelos dados do BC, as operações do setor externo tiveram um efeito contracionista de R$ 91 bilhões na base monetária (emissão primária de moeda mais depósito à vista nos bancos). Sem movimento na economia, e com uma velocidade renda da moeda baixíssima (o dinheiro não circula como antes), os bancos acabam por depositar no BC os reais da contrapartida das operações cambiais, uma massa de dinheiro que ajuda o governo a prover liquidez para os setores da economia e faixas da população que se ressentem de renda nesta fase de grave recessão.
São aspectos das contas cambiais e monetárias que se inter-relacionam. Ajudam a explicar de onde vem e para onde vão os recursos que transitam entre o mercado financeiro e o BC. As expectativas continuarão a guiar os números daqui em diante. O grande ponto de incógnita hoje, para além da pandemia, está no enorme e perigoso sentimento de insegurança que afeta os 200 milhões de trouxas, na definição do Ministro da Economia, Paulo Guedes, residentes neste país.
É muito grave a cena que se viu ontem, com caminhoneiros a desafiar as decisões do governo do Estado de São Paulo e do prefeitura da cidade de São Paulo, ao estacionarem seus veículos ao longo da Av. Paulista, sem obedecerem à regra do confinamento, do desimpedimento da via e nem ao rodízio imposto para a circulação de veículos na cidade. Mais do que uma atitude de afronta, foi um ato de desobediência civil praticado contra a autoridade pública, um crime previsto no Código Penal. A sensação de que o país caminha para um estado de anarquia espanta, claro, os investidores estrangeiros. Cabe aos trouxas arcar com as consequências.
*Maria Clara R. M. do Prado, jornalista, é sócia diretora da Cin - Comunicação Inteligente e autora do livro “A Real História do Real”.
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