terça-feira, 12 de maio de 2020

Andrea Jubé - As 11 mil mortes indignas

- Valor Econômico

“O príncipe deve desejar parecer piedoso, e não cruel”

”A raça humana é a única que sabe que vai morrer e só o sabe pela experiência”, disse Voltaire no século XVIII - embora hoje seja contestado por evidências de que alguns animais pressentem a morte, como os elefantes.

Entretanto, o direito a uma morte digna, com alguma previsibilidade e ritual de despedida foi conquistado pelos homens ainda na Idade Média, a partir da experiência com a peste negra (ou bubônica), que se originou na China e veio a matar 25 milhões de pessoas em quatro anos na Europa no século XIV. A pandemia retornaria em ondas sucessivas: em Londres, entre 1500 e 1665, houve pelo menos 17 surtos diferentes de peste.

A tragédia ensinou que as doenças infecciosas criam padrões que permitiram aos doentes pressagiar o fim iminente, e dessa forma, solucionar as controvérsias pendentes, expressar os últimos desejos, dizer como e onde gostariam de ser enterrados, e despedir-se dos entes queridos.

No livro “Uma história social do morrer”, o professor australiano Allan Kellehear narra alguns rituais peculiares que surgiram após a epidemia. No condado de Hereford, na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, havia o “devorador de pecados”. Pobres eram pagos com pão, cerveja e seis centavos para tomar para si os pecados do morto, e assim, liberá-lo para seguir em paz rumo ao descanso eterno.

“A qualidade moral e social do nosso viver é verdadeiramente medida pelo padrão da nossa chegada e partida”, diz Kellehear, que é autor do maior estudo sociológico sobre a experiência humana da morte. É justamente o direito a um tratamento digno - ou, em último caso, a uma passagem digna - que a escalada da pandemia da covid-19 no Brasil está negando aos brasileiros.

À medida que aumentam os casos confirmados, uma parcela expressiva da população agoniza sem acesso a leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e respiradores, enquanto faltam equipamentos de proteção para uso dos profissionais de saúde.

No limite, as vítimas fatais perderam o direito a uma morte digna e piedosa, com direito a velório, cerimônia religiosa e a sagrada despedida dos familiares e amigos.

A evidência mais notória da perda dessa dignidade foram as imagens que correram o mundo da abertura pelas escavadeiras de valas comuns em Manaus para guardar os corpos dos mortos pela covid-19: solitários, anônimos, sem lápide, sem epitáfio, sem o adeus dos entes queridos, porque o adiamento dos enterros prolongava o risco de contaminação dos vivos. O prefeito de Manaus, Arthur Virgílio (PSDB), foi às lágrimas, mas o presidente Jair Bolsonaro, em seu papel de chefe de Estado, não manifestou pesar ou compaixão.

Passados 20 dias, o Brasil alcançou a impressionante marca de 10 mil mortos pelo coronavírus, ocupando o sexto lugar no ranking de países com o maior número de mortes, segundo a Universidade Johns Hopkins dos Estados Unidos. No dia em que o Ministério da Saúde confirmou a marca das 10 mil vítimas, a população testemunhou perplexa o descontraído passeio de jet sky de Bolsonaro. Nem uma palavra de pesar ou compaixão às vítimas, aos parentes ou àqueles que lutam para se recuperar da doença para a qual não há cura, não há tratamento referendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), não há vacina.

O presidente não demonstra empatia pelo sofrimento humano nem se esforça para tanto, enquanto as histórias de cada vítima vêm a público em pílulas de emoção. Vem à memória a imagem da policial Raquel, de 48 anos, escrivã da Polícia Civil do Pará, que morreu nos braços do marido, dentro do carro, depois do périplo frustrado pelas emergências de hospitais particulares e públicos. Ela tinha febre alta e falta de ar, mas teve o atendimento recusado.

Em seu livro, Allan Kellehear, que leciona na Universidade de Bradford, na Inglaterra, afirma que hoje “os que estão no poder sempre negam o morrer”, ou seja, a garantia do direito a uma morte digna. Segundo ele, testemunhamos o apequenamento dos valores humanos apartados da conexão e da responsabilidade social de uns para com outros.

Para Kellehear, a era cosmopolita em que vivemos “padronizou a morte indigna”, seja a dos idosos abandonados em casas de repousos, seja a dos miseráveis ou a das vítimas de doenças epidêmicas. “Depois de dois milhões de anos de morrer caracterizado por parcerias bem modeladas e bem compreendidas com a comunidade, a família e os profissionais da saúde especializados, hoje o morrer parece estar se desintegrando”, lamenta.

“As mortes indignas na idade atual representam uma falha moral e social em prover de modelos satisfatórios de assistência social os morrentes nas margens econômicas do mundo, o morrer está se tornando indiscutivelmente indigno”, completou.

Hoje o Amazonas disputa com o Ceará o epicentro da pandemia no Brasil. Em Manaus, as mortes diárias saltaram de 30 para 140. No mês passado, houve 650 sepultamentos em cinco dias. Em entrevista à BBC Brasil, o prefeito Arthur Virgílio disse que prepara um memorial para as vítimas enterradas nas valas comuns, que terão direito a uma identificação para lhes dar alguma dignidade. "Isso só não mexe com uma pessoa com o coração muito ruim: impotência, falta de recursos, e morrendo gente, morrendo gente”, desabafou o tucano.

Não se espera de Bolsonaro que verta lágrimas como Arthur Virgílio, mas espera-se que no papel de chefe de Estado, demonstre alguma compaixão pelas vítimas, pelos infectados que lutam para se recuperar e pelas famílias e amigos que compartilham o sofrimento.

Maquiavel advertiu o governante que não fosse piedoso, deveria ao menos se comportar como tal. “Cada príncipe deve desejar ser tido como piedoso e não como cruel”, ensinou Maquiavel. Segundo o escritor, o cardeal César Bórgia era considerado cruel; mas essa crueldade tinha recuperado a Romanha, logrando uni-la e deixá-la em paz e em lealdade. Até agora, Bolsonaro não tentou parecer piedoso e seu comportamento de aparente crueldade está longe de unir e colocar o país em paz.

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