terça-feira, 12 de maio de 2020

O que a mídia pensa - Editoriais

• Brincando de ser presidente – Editorial | O Estado de S. Paulo

O enfrentamento da crise é quase impossível quando se tem um presidente absolutamente incapaz de ver o mundo além do próprio umbigo

O Brasil decente e solidário está de luto. O Congresso e o Supremo Tribunal Federal decretaram no sábado passado luto oficial de três dias, depois que o Brasil superou a triste marca de 10 mil mortos pela covid-19. O governador de São Paulo, João Doria, já havia feito o mesmo na quinta-feira, dia 7, e o luto paulista será mantido até o fim da pandemia. Como lembrou o Supremo, em nota oficial, “precisamos, mais do que nunca, unir esforços, em solidariedade e fraternidade, em prol da preservação da vida e da saúde”. E a mensagem da Corte arrematou: “A saída para esta crise está na união, no diálogo e na ação coordenada, amparada na ciência, entre os Poderes, as instituições, públicas e privadas, e todas as esferas da Federação deste vasto país”.

No mesmo dia em que as principais autoridades do Judiciário e do Legislativo manifestavam pesar pelos milhares de concidadãos mortos e rogavam aos brasileiros que se unissem na luta contra a pandemia, circularam pelas redes sociais imagens do presidente Jair Bolsonaro a passear de moto aquática pelo Lago Paranoá, em Brasília, divertindo-se à beça. A este senhor, que brinca de ser presidente, não basta incitar seus camisas pardas vestidos de verde e amarelo a desafiar as instituições republicanas e a intimidar jornalistas; é preciso tripudiar sobre o sofrimento dos milhares de brasileiros que morreram e dos milhões que ora se encontram em quarentena, abrindo mão de sua vida social e enfrentando as agruras do desemprego e da redução de renda.

E mais: enquanto os governadores e prefeitos lutam para convencer seus governados a ficar em casa, única forma de retardar o colapso do sistema público de saúde – que já se verificou em diversos Estados –, o presidente avisa que vai ampliar, por decreto, o número de atividades consideradas essenciais e, portanto, livres de restrições durante a pandemia. “Vou abrir, já que eles (governadores) não querem abrir, a gente vai abrindo aí”, declarou Bolsonaro, como se a quarentena fosse uma escolha, e não um imperativo. Respeitados especialistas dizem, aliás, que o ideal seria impor desde já o chamado “lockdown”, isto é, a radicalização do isolamento social – o exato oposto do que Bolsonaro defende.

Compreende-se a dificuldade de fazer com que os cidadãos aceitem o isolamento social, o que inclui pôr em risco a própria sobrevivência e a da família em muitos casos. A situação fica ainda mais dramática à medida que a quarentena se estende no tempo. Portanto, é razoável esperar uma progressiva queda na adesão ao esforço coletivo para reduzir o contágio, mas está claro que essa queda tende a se acentuar quando a mensagem das autoridades a respeito da pandemia é confusa e fragmentada.

Se o presidente usa sua destacada posição de principal dirigente da República para, além de debochar dos mortos e dos que estão sofrendo, incitar os cidadãos a ignorar a quarentena imposta por governadores e prefeitos como se fosse desnecessária, não surpreende que muitos o façam. Em vez de inspirar os cidadãos a aceitar a responsabilidade de cada um no enfrentamento da pandemia, o presidente estimula o fracionamento da autoridade – o que, no limite, leva à desobediência e ao caos. Para complicar, o Ministério Público ainda colabora para minar a credibilidade dos governos estaduais e das prefeituras ao criar caso com compras emergenciais de equipamentos médicos, ignorando que, neste momento, eventuais irregularidades, previsíveis numa operação dessa magnitude, são o menor dos problemas diante da urgência urgentíssima.

O enfrentamento desta crise, que caminha para ser a maior da história do Brasil, depende, fundamentalmente, de harmonia entre as diversas autoridades, em todas as esferas, resguardadas as prerrogativas de cada uma, conforme o espírito da Federação. E depende de articulação dedicada entre o presidente, seus ministros, os governadores e os prefeitos, além do Congresso, do Judiciário e do Ministério Público. Obviamente não é fácil, como ficou claro na maior parte dos países do mundo, às voltas com atropelos no combate à covid-19. Mas é muitíssimo mais difícil, quase impossível, quando se tem um presidente que, tal como um adolescente birrento e mandão, é absolutamente incapaz de ver o mundo além do próprio umbigo.

• A necessária voz dos partidos – Editorial | O Estado de S. Paulo

O isolamento social não pode ser sinônimo de omissão das lideranças políticas

Como se não bastasse a pandemia do novo coronavírus, o País sofre uma grave e crescente crise política. Observa-se uma situação de instabilidade, impensável para um governo que não completou sequer ano e meio de existência. Ainda mais grave, tem-se uma escalada de ameaça e de afronta à lei e às instituições, incompatível com a Constituição de 1988. No entanto, estranhamente, não se vê manifestação à altura dos partidos políticos – entidades que, em tese, congregam e representam politicamente os interesses da população. Diante dessas graves circunstâncias, que podem trazer sérios danos para o País, não cabe omissão dos partidos e de suas lideranças.

No dia 19 de abril, em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, o presidente Jair Bolsonaro participou de uma manifestação que, clamando por uma intervenção militar, pediu o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Atos semelhantes ocorreram em outras cidades. Tal foi o acinte antidemocrático dos atos de 19 de abril que o procurador-geral da República, Augusto Aras, até então distante de atritos com o presidente Bolsonaro, pediu ao Supremo abertura de inquérito para apurar a organização das manifestações, que violam a Lei de Segurança Nacional.

Menos de uma semana depois, no dia 24 de abril, o ex-juiz da Lava Jato Sérgio Moro pediu demissão do Ministério da Justiça e acusou o presidente da República de tentar insistentemente interferir politicamente na Polícia Federal (PF). Segundo Sérgio Moro, há vários meses o presidente Bolsonaro tentava trocar a chefia da PF e de algumas superintendências estaduais sem, no entanto, apresentar um motivo razoável para a mudança. Admitido abertamente pelo presidente Bolsonaro, o objetivo da troca era ter acesso a investigações e relatórios de inteligência, sensíveis aos interesses políticos e familiares de Bolsonaro. Diante das denúncias de Sérgio Moro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) solicitou ao STF abertura de inquérito para investigar o caso.

No dia 3 de maio, o presidente Jair Bolsonaro participou de mais uma manifestação antidemocrática, dessa vez em frente ao Palácio do Planalto. O ato tinha a mesma finalidade dos que ocorreram no dia 19 de abril – apoiar Bolsonaro e conclamar pelo fechamento do Congresso e do STF. A corroborar o objetivo liberticida, manifestantes agrediram profissionais da imprensa – entre eles, um fotógrafo e um motorista do Estado –, que faziam a cobertura do evento. A PGR pediu ao Ministério Público do Distrito Federal apuração acerca das agressões.

Cada um desses episódios é extremamente grave. Juntos eles suscitam os piores temores. Há pessoas investidas em autoridade fazendo acintosamente pouco-caso da Constituição e das instituições. Além disso, a reiteração dos atos revela um sentimento de certeza da impunidade por parte dessas autoridades. Diante desse quadro, é incompreensível o silêncio dos partidos e de muitas de suas lideranças.


Da mesma forma que uma situação como a da pandemia do novo coronavírus desperta a liderança de governadores e prefeitos, é urgente que a atual crise desperte os partidos políticos. O necessário isolamento social não pode ser sinônimo de omissão das lideranças políticas. Seria um equívoco achar que já basta o Judiciário, em concreto o STF, para pôr freios e limites ao bolsonarismo e ao seu chefe. Certamente, o Direito oferece instrumentos de proteção da Constituição, mas a crise que o País atravessa hoje é também e principalmente de natureza política. Sem a participação dos partidos – sem a política –, os remédios serão temporários e pontuais, sem enfrentar as causas de fundo da crise.

Os partidos, em seu conjunto, representam a Nação em seus corpos políticos. Não podem agora ficar alheios ao problema. Este é o momento para que as legendas exerçam seu papel. Não existe democracia representativa sem partidos. Quando eles se escondem, autoritários e demagogos sentem-se à vontade não apenas para proferir bravatas, mas para ampliar impunemente suas competências, assenhoreando-se do Estado. A voz dos partidos precisa se fazer ouvir.

• O risco de uma péssima herança fiscal – Editorial | O Estado de S. Paulo

Só firmeza política evitará um legado desastroso para o próximo mandato

Tapar buraco será uma das principais atividades do próximo governo, se a piora das contas públicas seguir no ritmo estimado por especialistas do mercado e do Ministério da Economia. Enquanto a epidemia se espalha, as mortes se multiplicam e o chefe do Executivo passeia de jet ski e ataca os demais Poderes, a economia afunda e os três níveis de governo se atolam no déficit fiscal crescente. Novas notícias confirmam a deterioração a cada dia. Prefeitos podem adiar contribuições à Previdência, prejudicando os sistemas municipais de aposentadoria e também o INSS, informou o Estado na segunda-feira. Governos estaduais se endividam e ao mesmo tempo suspendem pagamentos à União. O déficit federal se amplia, as agências de classificação de risco assistem ao espetáculo. Com a deterioração das finanças oficiais, o retorno do Brasil ao grau de investimento, emblema do bom pagador, se torna mais problemático.

Quanto mais demorada a contenção da pandemia, maiores os danos à atividade econômica. A retomada segura dos negócios, mesmo gradual, só será possível quando estiver declinando a curva da contaminação e das mortes. Esse caminho, indicado pela experiência de outros países, tem sido recomendado por figuras destacadas da epidemiologia e da economia. Enquanto a crise de saúde se prolonga, consumo, produção e renda familiar se contraem, derrubando a arrecadação de impostos e contribuições. No caso do Brasil, a receita pública é prejudicada também pela retração dos preços do petróleo. Esses preços até poderão subir no fim do ano, depois de um grande recuo na produção, como têm previsto alguns analistas, mas o quadro, por enquanto, é de mercado retraído e cotações deprimidas.

A contração econômica tem sido confirmada pelos dados iniciais de abril, primeiro mês inteiramente marcado, no Brasil, pelos efeitos da pandemia. A produção de veículos foi a menor desde 1957, quando se instalavam no País as grandes montadoras. Foram fabricadas apenas 1,8 mil unidades, equivalentes a um dia normal de trabalho numa unidade da Fiat em Betim.

No comércio e na indústria os estoques se acumularam, enquanto os consumidores se afastavam e passavam a comprar somente o básico. Na indústria eletroeletrônica e de informática, as empresas com estoques considerados excessivos passaram de 6,2% em março para 38,5% em abril. Entre as montadoras de veículos o salto foi de 1,5% para 41,2%.

A perda de renda dos trabalhadores, a redução do emprego e as dificuldades de milhares de empresas são os efeitos mais dramáticos da contração dos negócios. As previsões se transformam numa espécie de loteria macabra. Há pouco mais de um mês, em 6 de março, ainda se previa algum crescimento para o Produto Interno Bruto (PIB). A mediana das projeções do mercado apontava expansão de 1,99%. A estimativa, agora, é de contração de 4,11%, segundo o boletim Focus divulgado nesta segunda-feira pelo Banco Central (BC). Pelo menos uma instituição financeira já estima redução de 9%.

O desastre será refletido nas contas públicas, com o efeito conjunto da recessão, dos gastos extraordinários e das facilidades concedidas a empresas, Estados e municípios. A mediana das projeções agora indica um déficit primário, isto é, sem juros, equivalente a 7,52% do PIB. No boletim de 6 de março, quando se notavam os primeiros efeitos da pandemia, o déficit estimado correspondia a 1,10% do PIB.

Mas o estrago fiscal se estenderá por vários anos, mesmo com a retomada de alguma disciplina em 1.º de janeiro. Aquele boletim de 6 de março apontava um resultado primário levemente positivo – superávit de 0,10% do PIB – no final de 2022. O resultado chegaria a 0,25% em 2023. Na edição publicada ontem, o saldo primário previsto para 2023 ainda é um déficit de 0,70% do PIB. Quatro semanas antes a mediana das projeções indicava equilíbrio. Confirmada a nova estimativa, o presidente eleito em 2022 herdará contas bem piores que as estimadas até há pouco tempo. Um legado melhor dependerá de coragem política.

• É preciso apressar os hospitais de campanha – Editorial | O Globo

Pesquisador diz que abertura de leitos de enfermaria poderá salvar vidas, mesmo sem ventiladores

Desde que o novo coronavírus começou a fazer vítimas na China, no fim do ano passado, espalhando-se rapidamente pelo mundo, estava claro que nenhuma rede de saúde, por mais bem estruturada que fosse, conseguiria dar conta da quantidade de doentes que procuram ao mesmo tempo as emergências, muitos com sintomas graves, precisando de cuidados intensivos. Por isso, a construção de hospitais de campanha, planejados para a fase de pico da epidemia, passou a ser estratégia comum dos governos para desafogar o sistema e ampliar o atendimento aos doentes. Tem sido assim no mundo inteiro.

No Rio, como ocorre em outras partes do país, como os estados do Amazonas, Pará, Ceará e Maranhão, o planejamento dessas instalações parece ter sido atropelado pela realidade de uma doença que acelera rapidamente, levando os sistemas de saúde ao colapso antes do previsto. É nesse cenário que ganham importância ainda maior os hospitais de campanha. Não é admissível que existam hoje no Rio mais de mil pessoas numa fila de espera por um leito para tratamento de Covid-19. Entende-se por que a segunda cidade mais populosa do país apresenta a maior taxa de letalidade da doença. As pessoas estão morrendo antes de conseguir atendimento médico.

Em entrevista ao GLOBO, o infectologista Fernando Bozza, especialista em medicina intensiva e pesquisador da Fiocruz, disse que a abertura imediata de leitos nos hospitais de campanha, mesmo os de baixa complexidade, aliviaria a pressão sobre a rede e reduziria a letalidade da doença. “É essencial abrir os leitos de enfermaria neste momento. A fila do Rio é de 1.300 pessoas. Dessas, entre 70% e 75% precisam de um leito na enfermaria. Isso significa que esses pacientes têm algum grau de deficiência respiratória e oxigenação baixa. Por isso, precisam de oxigênio, mas não de ventilação mecânica”, afirma.

O primeiro hospital de campanha do Rio, o do Leblon, foi inaugurado no dia 25 de abril, uma semana antes do previsto, com capacidade para 200 leitos, sendo cem de UTI. Já foram abertos também o do Riocentro (500 leitos, cem de UTI), o do Maracanã (400 no total) e o do Parque dos Atletas (200, 50 de UTI). Mas é preciso considerar que a ativação das unidades ocorre de forma gradativa, o que significa que elas ainda não estão operando com plena capacidade. A previsão é que até o fim do mês o estado tenha 2.840 vagas em 14 hospitais de campanha.

O rápido avanço da doença no país — já são mais de 160 mil infectados e passou-se dos 11 mil mortos —, as longas filas de espera e as altas taxas de letalidade impõem uma aceleração no processo de instalação desses hospitais de campanha. Quanto antes estiverem prontos e funcionando, mais vidas poderão ser salvas.

• Evolução da pandemia demoliu tese bolsonarista contra o isolamento – Editorial | O Globo

A velocidade do aumento do número de casos mostra a necessidade de medidas mais duras nas cidades

Bolsonaro continua a justificar as críticas de dentro e de fora do país ao seu comportamento inominável com relação à tragédia em curso no país provocada pela epidemia da Covid-19. Desde que começaram a ser contabilizados no Brasil casos de infecção pelo vírus Sars-CoV-2, no final de fevereiro, o presidente assume uma posição negacionista, contrária a medidas preventivas como o isolamento social, quarentenas e similares.

O presidente Trump recuou em parte nessa posição quando começou a se assustar com a explosão no número de mortos no estado de Nova York (até o início da tarde de ontem, 26.800), que tomou da cidade chinesa de Wuhan o posto de epicentro mundial da pandemia. O colega brasileiro, ao contrário, segue em frente no desatino.

No sábado, quando o país alcançou oficialmente 10 mil mortes, Bolsonaro passeou de jet-ski no Lago Paranoá, em Brasília, depois de ter desmentido que faria um churrasco para a família e convidados no Alvorada, um tipo de evento desaconselhado por gerar aglomerações e facilitar o contágio por um vírus de elevada transmissibilidade. O presidente recuou na festa devido ao tamanho da repercussão negativa. Em contrapartida, Congresso e Supremo decretaram luto oficial pelas vítimas.

O histórico desta pandemia já fornece provas e argumentos sólidos de que seria um erro crasso de dimensões descomunais o poder público nada fazer para atenuar a propagação de um vírus desconhecido, contra o qual ainda não há a proteção de vacina e medicamentos que possam contê-lo. Tudo dentro da teoria de que os vírus cumprem um ciclo de ascensão e queda, à medida que a contaminação das pessoas vai criando anticorpos na população.

Mas a que custo em termos de vidas humanas? Na noite de sábado, o programa “GloboNews Debate”, com a participação dos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta (Saúde, Bolsonaro), do DEM; Humberto Costa (Saúde, Lula), do PT; e Osmar Terra (da Cidadania, Bolsonaro), do MDB, serviu para reafirmar a fragilidade da argumentação bolsonarista contra o isolamento e outras medidas desse tipo, defendidas no programa por Terra.

O deputado do MDB gaúcho, também médico como Mandetta e Humberto Costa, não conseguiu justificar o fim do isolamento diante da sobrecarga nas redes de saúde, como já ocorre em Manaus, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Deixa-se as pessoas morrerem sufocadas nas ruas? É indiscutível que os países que ensaiaram uma posição mais relaxada no início da epidemia foram forçados a tomar medidas às pressas para esvaziar as áreas públicas. Foi assim na Itália e nos Estados Unidos, casos notórios de recuo.

• Amarelo-golpista – Editorial | Folha de S. Paulo

Autoritários excitam predisposição do presidente e exigem reação institucional

Sob o beneplácito do presidente da República, a cor da moda em nichos da veneração bolsonarista é o amarelo-golpista. Combinada ao verde-ódio, a onda retrô patrocina aglomerações em plena epidemia mortal, emprega violência e incita à ruptura do regime democrático.

Seus primeiros modelos se exibiram acoplados a movimentos que pediam o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2015 e 2016. Outro desfile, mais desavergonhado, ocorreu no cerco à população brasileira promovido por caminhoneiros em maio de 2018.

Após a vitória de Jair Bolsonaro, os tons da boçalidade passaram a adornar gabinetes do Executivo federal e chegaram ao Planalto. A longa trajetória do eleito como deputado federal não deixava dúvidas sobre suas inclinações autoritárias e seu desprezo pelos princípios norteadores do pacto de 1988.

Uma vez eleito, não negou sua própria biografia. Pior, a caneta na mão deu vazão ao irascível e incapaz chefe de Estado para criar uma série de crises. O exemplo mais recente de uma lista imensa é a incapacidade de liderar o país no momento em que o Brasil e o mundo passam pelo maior desafio sanitário e econômico de uma geração.

O erro crasso de Bolsonaro ao menosprezar o impacto da pandemia na saúde transformou o que era uma relação difícil com os demais atores institucionais num conflito aberto. O presidente se colocou quase na condição de pária mundial e talvez por isso se aproximou mais da militância lunática.

Que não reste dúvida sobre quem é a parte fraca —Bolsonaro— e quem é a forte —a arquitetura institucional que o contém— nesse embate. Ainda assim, cabe aos fiscais da lei investigarem quem está por trás de movimentos conspiratórios, mesmo que partam de nichos aparentemente exóticos, o que é apenas parcialmente verdade quando examinadas algumas conexões dos agitadores da baderna.

Detectaram-se pessoas próximas a quem exerce mandato em relação com aparelhos, como um tal “300 do Brasil”, que organizaram atos antidemocráticos. Investigam-se deputados sob suspeita de envolvimento em tramas contra a ordem constitucional, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso.

No Conselho de Ética da Câmara, adormece representação contra o deputado Eduardo Bolsonaro, por cogitar a repetição de uma medida como o AI-5, que em 1968 fechou o Congresso e esmagou o que restava de liberdades individuais.

Tais movimentos golpistas, que um dia se deram nas franjas distantes do poder de Estado, hoje excitam a predisposição de quem está na Presidência. Que o Judiciário e o Legislativo descubram quem segura as cordas a mover as marionetes de camisa amarela.

• Secretária da sucata – Editorial | Folha de S. Paulo

Regina Duarte pode ter ganho sobrevida à custa da pacificação do setor cultural

O Brasil perdeu nas últimas semanas uma galeria de nomes ilustres da cultura nacional. Dos contistas Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna aos compositores Moraes Moreira e Aldir Blanc, passando pelo artista plástico Abraham Palatinik.

Em nenhum momento autoridades do governo federal, a começar pela secretária de Cultura, Regina Duarte, demonstraram publicamente algum tipo de pesar —o que, infelizmente, não surpreende diante das constantes demonstrações de aversão ao conhecimento científico, às artes e à educação.

Dado que a riqueza cultural acumulada passou de “soft power” reconhecido internacionalmente a alvo de guerrilhas ideológicas, não se poderia esperar coisa diferente.

O obscurantismo nesse terreno desafia limites. A ocupação massiva dos órgãos do setor por uma malta de despreparados e fanáticos —teleguiados, não raro, pelo guru do ideário cultural bolsonarista, o escritor Olavo de Carvalho— parecia encontrar uma pausa na nomeação da atual secretária.

De fato, quando da escolha da atriz, chegou-se a imaginar que se avizinharia uma trégua. Foi, infelizmente, um engano.

A secretária, que já se notabilizara pela omissão e pela falta de capacidade para o exercício da função, deu uma passo a mais em entrevista que concedeu ao canal CNN Brasil. Na ocasião, uma descontrolada Regina Duarte desfiou uma série espantosa de sandices, que foi da nostalgia em relação ao ufanismo da ditadura militar ao desprezo pelas vidas —e não apenas as dos grandes nomes da cultura— que se perdem aos milhares com a pandemia do novo coronavírus.

À sua maneira e por outros caminhos, a secretária repetiu na TV a sinistra performance de seu antecessor, Roberto Alvim, que encenou um pastiche nazifascista para anunciar seus planos para o setor.
A permanência da atriz no cargo se afigura pouco promissora, embora nas cavernas do bolsonarismo suas palavras tenham encontrado eco e, quem sabe, lhe assegurado alguma sobrevida.

Nessa lógica de sinais trocados, em que o pior é visto como melhor, uma eventual substituição não daria lugar a nada de minimamente auspicioso, de todo modo.

Importa menos que a área tenha sido rebaixada ao segundo escalão do Executivo, abrigada na inexpressiva pasta do Turismo. Pior é observar o aparelhamento ideológico e a indigência do pensamento que emana das repartições culturais.

• Comércio exterior pode fazer algum contraponto na recessão – Editorial | Valor Econômico

Corrente de comércio diminuirá e importações cairão mais que exportações

Em contraste com a série de notícias negativas que a economia brasileira vem colecionando, a balança comercial de abril surpreendeu positivamente com um saldo de US$ 6,7 bilhões. O resultado superou em US$ 600 milhões até US$ 800 milhões as expectativas do mercado, que estava pessimista com o primeiro mês impactado integralmente pelo efeito da pandemia do coronavírus na economia. Tanto exportações quanto importações caíram. O saldo de abril é resultado de exportações que somaram US$ 18,3 bilhões. Mas as importações caíram mais, 12,3%, e totalizaram US$ 11,6 bilhões. No balanço final, foi o segundo maior resultado para o mês da série histórica, somente superado por abril de 2017.

De janeiro a abril, o saldo acumulado pela balança comercial está em US$ 12,264 bilhões, com queda de 16,4% sobre os US$ 14,7 bilhões do mesmo período de 2019. Esse foi o pior resultado para os quatro primeiros meses de um ano desde 2015, quando houve um déficit de US$ 5,1 bilhões. Em 12 meses, o saldo é de US$ 45,621 bilhões.

A Secretaria de Comércio Exterior (Secex) estimou que a balança comercial vai fechar o ano com superávit de US$ 46,6 bilhões, com uma queda de 3% em relação ao resultado de US$ 48 bilhões do ano passado, mas relativamente suave em vista do cenário global. A previsão leva em conta variáveis como importações mundiais, taxa de câmbio real, atividade econômica brasileira, produção industrial e o comportamento do comercio exterior brasileiro. Se essas projeções se confirmarem, o Brasil terá um desempenho no comércio exterior acima da média global. A Organização Mundial do Comércio (OMC) calcula que a corrente mundial de comércio diminuiu 4% no primeiro quadrimestre; e estima que deve encolher de 13% a 32% este ano.

Alguns fatores sustentam a previsão. A forte queda do real tornou os produtos brasileiros mais competitivos em dólar. Outro fator é a forte presença do Brasil no mercado global de alimentos como grãos e proteína animal. Mesmo em plena pandemia, países não deixam de comprar alimentos. Além disso, não só a China, mas a Ásia como um todo está se tornando parceiro comercial cada vez mais importante e tem reforçado as compras de alimentos. As exportações para a Ásia cresceram 28,65% em abril. Somente para a China o aumento foi de 29,5%, apesar das provocações de alguns setores do governo. Uma vantagem adicional da parceria com a China é o fato de estar saindo da crise causada pelo coronavírus antes das demais nações.

Já as exportações para os EUA e Argentina, os dois maiores parceiros comerciais depois da China, caíram 31,7% e 46%, respectivamente; e para a União Europeia subiram apenas 0,21%. Tanto os EUA quanto a Argentina enfrentam forte contração econômica. A pauta de vendas para esses países é muito concentrada em produtos industrializados, cujo comércio está abalado globalmente pela pandemia.

Uma pauta de exportações expressiva em alimentos e maior volume embarcado sustentaram o desempenho das exportações em abril. As vendas externas de produtos básicos saltaram 22,8%, compensando parcialmente a queda de 34,4% das exportações de manufaturados e de 4,8% dos semimanufaturados. Houve recorde mensal nos embarques de produtos como soja, com 16,3 milhões de toneladas e carne bovina fresca, refrigerada ou congelada, com 116 mil toneladas. Já em relação ao valor exportado, apresentaram recorde mensal a soja com US$ 5,5 bilhões; a carne bovina, com US$ 509 milhões; e a carne suína, US$ 154 milhões.

Há quem receie que os próximos meses mostrem resultados menos favoráveis devido ao agravamento da crise global e do acirramento da desglobalização das cadeias de produção e aumento do protecionismo. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) prevê que a diminuição do comércio internacional causada pela pandemia causará uma retração das exportações brasileiras entre 11% e 20% em 2020, com vendas em patamar inferior a US$ 200 bilhões. A crise também terá repercussão nas importações, que cairão 20%, para cerca de US$ 140 bilhões. O superávit comercial projetado é até superior ao esperado pelo governo. Mas as contas do Ipea embutem uma perspectiva de redução da corrente de comércio de pouco mais de 12%, dos US$ 402,7 bilhões de 2019 para US$ 353 bilhões neste ano - ainda assim em linha com as previsões mais otimistas da OMC.

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