quinta-feira, 4 de junho de 2020

Ascânio Seleme - Uma ilha chamada Brasil

- O Globo

Silêncio logo aqui, onde jovens negros são mortos por policiais diariamente

Está certo, temos problemas aos montes e não podemos mesmo nos dispersar muito cuidando de questões que ocorrem em outros países. Mas por vezes parecemos alienados, isolados do mundo, fechados num egoísmo absurdo que não permite que enxerguemos um pouco além do nosso próprio horizonte. Estou falando do assassinato estúpido do negro George Floyd por um policial branco em Minnesota e que há dez dias mobiliza todo o planeta em protesto contra o racismo. O que se viu no Brasil nestes dias? Muito pouco, ou quase nada.

Logo o Brasil foi se calar. Logo aqui, onde jovens negros são mortos por policiais diariamente sem direito à defesa e muitas vezes sem motivação e sem crime. As imensas manifestações pela morte de Floyd ganharam rapidamente os Estados Unidos e se espalharam pelo mundo. Muitos episódios emocionantes foram registrados por fotógrafos e cinegrafistas nesta jornada que não tem data para acabar. No Brasil, onde a polícia é muito mais violenta e onde os negros são mil vezes mais vitimados, não se viu nada, fora uma manifestação solitária em Laranjeiras e a convocação de outra para domingo que vem, na Candelária.

Em Brasília, o presidente da República brindou com dois puxa-sacos usando copos de leite. Disse estar fazendo campanha em favor dos produtores de leite. Pode ser, mas houve quem enxergasse no episódio um gesto em favor de supremacistas brancos. Logo depois, um dos seus blogueiros prediletos fez o mesmo brinde e, citando a live de Bolsonaro, levantou o copo e disse “entendedores entenderão”. Justamente o blogueiro Allan dos Santos, processado no Supremo Tribunal Federal por fake news. E houve também a noite das tochas em frente ao STF, em que milicianos lembravam a Ku Klux Klan.

Mais grave ainda, porque explícita, foi a declaração do presidente da Fundação Palmares sobre o movimento negro. Não que a estupidez de Sérgio Camargo pudesse surpreender alguém. Ninguém ignora que, embora negro, ele não esconde seu ódio a qualquer política ou movimento afirmativo. No auge das manifestações de repulsa ao assassinato de Floyd, Camargo foi ao Twitter e escreveu que “a influência do movimento negro sobre os negros é perniciosa e deletéria”.

No dia seguinte, conforme diálogo publicado pelo “Estadão”, Camargo reclamou com assessores do sumiço de seu celular corporativo. E logo encontrou um responsável pelo sumiço do aparelho. “Quem poderia ter feito isso?”, indagou. Ele mesmo respondeu: “Os vagabundos do movimento negro, essa escória maldita”. Esse é o presidente de uma “instituição pública voltada para a promoção e a preservação de valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”. E o que se viu no Brasil? Por ora quase nada, ou muito pouco.

Gastando menos
Estudo do pesquisador e jornalista Fábio Vasconcellos, professor da Uerj, mostra que despencaram em 68% os gastos da Câmara dos Deputados com as cotas parlamentares em dois meses de distanciamento social. Em abril e maio, os 513 deputados federais brasileiros gastaram R$ 11 milhões, contra R$ 37 milhões consumidos nos mesmos dois meses do ano passado. Obviamente o gasto que mais caiu foi o com passagens aéreas, já que os parlamentares estão nas suas bases e não viajaram nesse período. Antes da pandemia, este gasto representava 29,9% do total das cotas. Agora, somou apenas 0,6% do total, com R$ 67 mil.

A notícia é boa? Depende do ângulo em que se olha para ela. Claro que economia é sempre muito bem-vinda, sobretudo de dinheiro público usado em representação. Mas, por outro lado, a atividade parlamentar foi substancialmente prejudicada nestes dois meses de isolamento social. E o que menos pode se querer neste momento é deixar o Poder Executivo jogando sozinho, já que o presidente ignora a determinação de distanciamento. Todo mundo está economizando com a quarentena. Empresas, famílias, indivíduos gastam menos porque consomem menos. Mas também produzem menos. No caso do Legislativo, essa não é uma boa notícia.

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