- O Globo
A metáfora banaliza as tragédias do passado
Comunista! Ditador! Genocídio! Fascismo!
À direita e à esquerda, atiradas ao vento, saraivadas de palavras esvaziam os conceitos. A linguagem importa — e sua deterioração assinala um declínio.
Ninguém, entre pessoas sãs, dá atenção ao vício olavo-bolsonarista de classificar como “comunista” qualquer voz crítica, de nacionalistas de esquerda, social-democratas, centristas, conservadores ou aliados de ontem. Nas redes de insultos de um governo que sustenta um “gabinete do ódio” com recursos públicos, até Moro já figura entre os devotos de Lenin. Mas a paisagem é outra, quando a palavra emana de quem não pertence à seita de malcriados instalada no Planalto.
“Ditador” é o rótulo que Eduardo Moreira, líder do movimento “Somos 70%”, aplicou sobre a imagem de Jair Bolsonaro. Moreira era uma criança no outono da ditadura militar. Contudo, engenheiro, investidor, ex-sócio do Pactual, não tem álibi para proferir bobagens. O presidente, eleito democraticamente, sonha com a restauração do AI-5 mas não consegue nomear um diretor da PF ou ocultar as estatísticas da pandemia. Se fosse ditador, o manifesto do “Somos 70%” não seria publicado e seu articulador estaria preso.
Moreira pertence à era das redes sociais, um tempo de destruição em massa do sentido das palavras. Escreva poucos caracteres, simplifique o raciocínio, não use adversativas, provoque impacto. A receita do Face ou do Twitter tem efeito anestésico: mobiliza as redes, enquanto entorpece a sociedade. Se ditadura é isso, por que trocar o teclado pela rua?
A denúncia de um “genocídio negro” veio à luz quatro décadas atrás, no título de um livro de Abdias do Nascimento. Genocídio é a eliminação física deliberada de uma população inteira. Raphael Lemkin, judeu polonês, criou o conceito em 1944, inscrevendo-o no direito internacional (https://bit.ly/3dUqQEG). Casos clássicos são o genocídio armênio (1915), o Holocausto (1941-45), e os do Camboja (1975-79) e de Ruanda (1994). No Brasil, os negros são vítimas de racismo e violências policiais cotidianas, não de genocídio. Prova? A população negra não foi exterminada, antes ou depois de Abdias, mas cresce em termos absolutos e relativos.
O “genocídio negro” entorpece, desviando o foco de crimes intoleráveis para um fantasma retórico. O mesmo se passa com a acusação ritualizada de que o governo pratica uma política genocida diante da pandemia. A negligência com a saúde pública deve ser qualificada como crime de responsabilidade, mas inexiste um plano exterminista. Se a palavra terrível colide com a realidade, por que acreditar na parte verdadeira do discurso dos que a manipulam?
A metáfora banaliza as tragédias do passado e converte as disputas do presente num teatro de sombras: a substituição do que ocorre de fato por espectros de uma outra história. “Fascismo”, acusação da moda, é uma ideia fora de lugar.
Na história, o fascismo é um movimento popular antiliberal. O líder fascista assalta o poder à frente de um movimento de massas, servindo-se de milícias armadas que, depois, serão dissolvidas. O regime fascista reorganiza a sociedade e a economia em bases corporativas, sob rígido comando estatal. O olavo-bolsonarismo, com seus punhados de ignorantes vestidos em camisas amarelas e as miragens ultraliberais de seu ministro da Economia, está tão distante do fascismo quanto o PT está do comunismo.
A esquerda que grita “fascismo!” é uma vítima intelectual da queda do Muro de Berlim. O evento rompeu sua tão invocada aliança com o Futuro, condenando-a a interpretar a história como eterna repetição. A armadilha faz sua linguagem coincidir com a dos Antifas, herdeiros dos grupos europeus de “ação direta” dos anos 1970, que identificam a democracia ao fascismo para combater a primeira.
A era das redes sociais instala uma ditadura da metáfora. Batizamos fenômenos novos com nomes antigos, não para decifrá-los, mas para produzir o efeito desejado na audiência. Na prática, a intenção não se realiza: cedo ou tarde, as pessoas descobrem que a palavra degradou-se em mero ruído.
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