- O Estado de S.Paulo
O presidente não foi eleito para cuidar dos filhos, mas para orientar um projeto nacional
O presidente Bolsonaro entrou no modo sobrevivência, que deve ser distinguido do modo governabilidade. Conforme o primeiro, ele orienta todas as suas ações para se manter no poder, sem nenhuma preocupação com o Brasil, procurando apenas conservar o mandato. Pelo segundo, ele teria de ter projetos, ideias e meios de execução, o que implicaria um governo moderado, sem conflitos e provocações, voltado para a articulação política.
A parceria com o Centrão, por exemplo, se faz sob o modo sobrevivência, mediante a distribuição de cargos em órgãos e empresas estatais, em flagrante contradição, aliás, com sua própria narrativa. Não importa, visto que necessita em torno de 200 deputados para evitar o processo de impeachment e sempre pode haver desfalques. Entre o mandato e a narrativa, o presidente já fez a sua opção, com evidentes prejuízos perante a sua rede de apoiadores digitais.
Daí não se segue, porém, que ele adquira governabilidade, pois isso significaria a capacidade de aprovar projetos de lei e emendas constitucionais, tendo, por sua vez, como condição a existência de ideias a serem apresentadas. Até agora, só tivemos ideias ao léu. E não se recorra à pandemia como justificativa, pois a inércia governamental é anterior a ela. O projeto de privatização e concessões apresentado com grande fanfarra mostrou-se raquítico. Também não foi apresentado nenhum projeto de reforma tributária, administrativa ou política. De novo, só falas e mais falas sem consequência, senão a demagógica.
O presidente encontra-se numa encruzilhada. Se permanecer orientado pelo confronto incessante, produzindo inimigos reais e imaginários, desgastará ainda mais o seu prestígio, pondo o modo sobrevivência em risco. O modo governabilidade, por seu lado, nem seria levado em consideração. Conseguiu ele até mesmo um prodígio: uniu o Supremo Tribunal em nome da defesa da Constituição! Até então quase tínhamos 11 Supremos, como se cada um fosse uma ilha de decisões monocráticas. Agora surge um coletivo. Nesse sentido, não tem por que o presidente reclamar da consequência de suas ações.
Seu risco aumenta ainda mais se sua erosão continuar se propagando pela opinião pública, atingindo até mesmo a sua rede de apoiadores. Muitos se sentem já abandonados, acionando, neles também, o modo sobrevivência. Se até pessoas próximas do presidente, como o ex-policial Fabrício Queiroz, são presas, o que podem esperar os demais? Se apoiadores importantes sofrem mandados de busca e apreensão ou quebras de sigilo bancário, onde fica a tão apregoada proteção presidencial ou de seu clã familiar? E se esses vierem a ser ainda mais atingidos? Até o modo sobrevivência naufragaria, pois o próprio apoio do Centrão tampouco é incondicional e perene, depende das circunstâncias. Nenhum partido ou parlamentar comete suicídio político.
Isso significa que o presidente deveria adotar o modo governabilidade. Considerando a sua família e a sua personalidade, as suas chances são pequenas, porém não desprezíveis. Ou seja, a moderação e a prática democráticas deveriam ser o seu norte, abrindo-se ao diálogo e à articulação política. Não poderia o presidente permanecer refém de sua linha ideológica, com ministros utilizando constantemente a polarização amigo/inimigo, como se o Brasil fosse uma mera preocupação lateral. O presidente deveria, nesse sentido, fazer uma reforma ministerial baseada em critérios técnicos, voltados para o progresso, abandonando suas posições anticientíficas e o confronto com os governadores. O Brasil acumula cadáveres e o presidente finge que nada é com ele, num menosprezo indizível pelo outro, pelos que sofrem e morrem aos milhares pelo País afora.
O presidente deveria olhar menos para a sua família e mais para o Brasil. Não foi eleito para ser pai e cuidar dos filhos, mas para orientar o Brasil num projeto nacional. Muitas esperanças foram nele depositadas e muitas foram as desilusões causadas. Jair Bolsonaro está cada vez mais isolado - isolado do Supremo, isolado da Câmara dos Deputados e do Senado, isolado da grande imprensa, isolado em parte dos outros grandes meios de comunicação, isolado progressivamente da sociedade em geral.
Sob o modo defesa, diz falar pelo povo, como se ele mesmo fosse o povo, ou a Constituição, numa espécie de delírio totalitário. Ou, ainda, confundindo os seus apoiadores digitais ou as pequenas aglomerações na saída do Palácio da Alvorada com expressões “populares”. O arremedo de participação, tendo como coadjuvante a mera demagogia, cobra o seu preço na insensatez crescente.
Urge que o presidente entre no modo governabilidade, pois apenas o modo sobrevivência não lhe permite aguentar mais dois anos e meio. Não aguenta porque o Brasil não aguenta. Desemprego aumentando, renda caindo e o PIB não se recuperando são fatores que podem terminar tornando viável o impeachment. A moderação e o abandono do conflito podem tornar-se, assim, condições da preservação mesma de seu mandato. Hoje está a perigo!
*Professor de filosofia na UFRGS.
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