- Valor Econômico
Congresso está à mercê do populismo e do oportunismo
“Como será o amanhã?”, perguntava o refrão do samba-enredo da União da Ilha no carnaval carioca de 1978. Apesar de a escola da Ilha do Governador ter ficado apenas com o quarto lugar naquele ano, sua canção caiu no gosto popular, principalmente após o grande sucesso da gravação feita por Simone, cinco anos depois, no disco “Delírios, Delícias”.
“O Amanhã” foi composta por Didi, autor de mais de 20 sambas-enredo. Compositor de vida dupla, durante o dia ele se apresentava como o procurador federal Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta Neves. “No meu trabalho eu era muito sério, muito chato mesmo”, declarou a “O Globo” numa entrevista pouco antes de morrer, em 1987. Encerrado o expediente, o procurador tirava o paletó, afrouxava a gravata e se entregava à boemia. Tanto que, em 1991, a União da Ilha o homenageou com outro clássico: “hoje eu vou tomar um porre, não me socorre, eu tô feliz”.
“Bola de cristal, jogo de búzios, cartomante”... nem assim conseguimos pistas sobre como vai ser o nosso destino nos próximos meses ou anos. Condenados a um abre-e-fecha de atividades diante de uma gestão descoordenada da crise, sujeitos a uma segunda onda de contaminação global e sem saber quando poderemos respirar aliviados com uma vacina contra a covid-19, qualquer prognóstico sobre nosso futuro não passa de mera especulação ou “wishful thinking”.
A depender das previsões do mercado colhidas pelo boletim Focus, do Banco Central, somente em meados de 2023 alcançaremos o mesmo nível do PIB de 2019. A mediana da expectativa está se estabilizando em torno de -6,50% neste ano, mas quase ninguém ousa revisar as projeções para 2021 e além.
A gravidade da situação se reflete no Congresso Nacional. Embora parlamentares e o ministro da Economia repitam que o caminho para a recuperação é a aprovação de reformas, é difícil imaginar que num cenário de tanta incerteza haverá consenso em relação a mudanças que possam aumentar o ônus de alguns em relação à situação atual.
Tome o caso da reforma tributária. Antes da covid-19, a PEC inspirada nos estudos de Bernard Appy parecia estar alcançando uma aceitação inédita entre parlamentares e membros do governo federal, Estados e municípios. A perspectiva de simplificação tributária e os prazos dilatados para sua implantação também encontravam apoio no empresariado, embora houvesse uma resistência ferrenha do setor de serviços, que alardeava que a proposta iria aumentar significativamente sua carga tributária. Com o cataclisma provocado pelo coronavírus, que atinge de modo muito mais severo o comércio e os serviços, é muito improvável que seus representantes permitirão a aprovação da proposta original, levando-nos de volta ao imobilismo tributário.
Pior do que uma agenda paralisada é o avanço de uma pauta errática e motivada por visões de curto prazo. Analisando as proposições que tramitam em regime de urgência no Parlamento - compiladas pelo projeto Congresso Remoto, conduzido pelas organizações Pulso Público, Dado Capital e Observatório do Legislativo Brasileiro - podemos identificar uma série de medidas propostas por parlamentares que são repletas de boas intenções, mas podem trazer consequências deletérias para o país quando a pandemia passar.
Num universo de 420 PECs e projetos de lei eleitos como prioritários pelo Congresso no fim de maio, é possível identificar pelo menos 160 proposições que pretendem aliviar a situação de grupos específicos da sociedade brasileira. Estão no pacote sugestões de suspensão do pagamento de parcelas de financiamentos ligados aos programas Minha Casa Minha Vida, Fies e Pronaf, propostas para impor descontos compulsórios em aluguéis e mensalidades escolares, tentativas de suspensão da aplicação de multas e juros em contratos bancários e de planos de saúde. Como não poderia deixar de ser, há ainda propostas de novos parcelamentos de dívidas tributárias (os famosos Refis), sem falar nos incentivos para setores específicos, como turismo, atividades culturais e transportadores de carga, entre outros.
O grande problema de matérias como essas é que elas tratam demandas de grupos específicos de modo descoordenado e sem levar em conta seus efeitos de longo prazo sobre o conjunto da cadeia produtiva e da sociedade em geral. Ao tentar resolver os efeitos da pandemia de modo pontual, abre-se ainda margem para atender pleitos de quem não necessita de tanto socorro, mas tem maior capacidade de convencer deputados e senadores. Exemplo disso foi a aprovação no Senado, na semana passada, do PL nº 1.328/2020, que prevê a suspensão do pagamento de parcelas de crédito consignado por quatro meses - inclusive aquelas relativas a servidores públicos, aposentados e pensionistas do INSS, que na sua maioria não sofreram perdas de rendimentos com a crise.
Para completar, há também o velho oportunismo dos bem conectados com o poder. Ainda na semana passada, a Câmara aprovou o PL nº 1.013/2020, que além de interromper o pagamento da dívida tributária refinanciada pelos clubes de futebol, torna mais difícil a demissão de cartolas que não prestem contas de suas administrações. Sem surpresas, o relator da matéria foi o deputado Marcelo Aro (PP-MG), diretor de relações institucionais da CBF e membro de uma família que há mais de 40 anos controla a Federação Mineira de Futebol.
No samba do crioulo doido que se tornou a política brasileira nestes tempos de covid-19, com o Congresso funcionando por videoconferência e com regras especiais de tramitação legislativa, estamos ainda mais sujeitos à aprovação de leis populistas ou mal intencionadas.
Em 1982 Didi e a União da Ilha levaram mais um outro grande sucesso para a avenida: “É hoje”. Sem saber até onde vai a devastação provocada pelo corona, com uma crise política sem solução no horizonte e uma pauta-bomba no Congresso, parece distante o tempo em que poderemos voltar às ruas cantando “é hoje o dia da alegria, e a tristeza nem pode pensar em chegar”.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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