sexta-feira, 31 de julho de 2020

José de Souza Martins* - Medicina ideológica

- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

Deus está sendo usado de maneira cruel pelos oportunistas do autoritarismo para instituir uma nova sujeição social, em que as pessoas são escravas de uma liberdade manipulável

A banalização do conhecimento médico pelos não médicos e a vulgarização que leigos fazem do uso de medicamentos que conhecem por ouvir dizer, com base num senso comum eivado de distorções anticientíficas, são indícios significativos de nosso atraso cultural e mesmo social e político.

Não é raro que pessoas se automediquem pela associação de remédios que o vulgo define como “fortes”, os que “deram certo” no tratamento de doenças graves que não aquela do uso que lhe dão hoje. Ou os recomendem a outros.

Ainda nestes dias, a mídia noticiou que, no Sul do país, autoridades locais estão distribuindo medicamentos para combater a covid-19. Uma mistura de remédios que têm eficácia reconhecida em casos de outras doenças, mas cuja eficácia no caso de agora não se conhece.

O próprio presidente da República, apesar de contaminado pela covid-19 e de ter o diagnóstico da doença confirmado pela terceira vez, há dias insistiu em exibir-se aos manifestantes que o “apoiam”, em frente ao Palácio da Alvorada, com uma caixa de cloroquina nas mãos, medicamento não recomendado para o caso, mas que ele recomenda.

Entre nós, esse tipo de “sabedoria” é antigo. Para compreender o quanto há de atraso nesse voluntarismo do governante e de outras pessoas que o apoiam no proselitismo extracientífico, o quanto teimamos no atraso que já conhecemos e deploramos há muito, não posso deixar de citar a escritora paulista Teresa Margarida da Silva e Orta, nascida em 1711: “A arte de governar se acha com a prudência, se defende com a ciência e com a experiência se conserva”.

Poeta, romancista e pensadora iluminista, insurgente e desafiadora dos poderes, em nome da Razão, acabou presa num convento, em Portugal, durante sete anos, por ordem do Marquês de Pombal, privada da missa e dos sacramentos. Seria libertada pela rainha Dona Maria I, em 1777.

Numa outra reflexão, esclarece: “Se alguma vez erra quem se aconselha, raríssima vez acerta o que só pelo próprio juízo se governa”. E sem saber o que aconteceria no Brasil, mais de 200 anos depois de sua época e de seus escritos, recomendava: “Defendei mais a pátria que os parentes”.

Há enorme abismo entre persistentes concepções anticientíficas relativas à doença e à cura, na cabeça de toscos e de poderosos, no confronto com a lucidez de Teresa Margarida em sua “Obra Reunida”. Dolorosa evidência do que fizeram conosco e nós mesmos fizemos e continuamos a fazer para chegar a este novo tempo com uma visão das coisas e do mundo que é mera sobrevivência da barbárie.

Essas distorções deveriam ser levadas muito a sério. Seria interessante e útil que, nas ciências sociais, sociólogos e antropólogos realizassem pesquisas empíricas e objetivas sobre os fundamentos dessa espécie de ideologia retrógrada do que é doença e cura.

Aí temos de tudo. Desde a concepção de que a doença é um castigo divino que pune os crescentes pecados do homem, especialmente para que abra os olhos para os abusos e violações da vontade de Deus. Nela, as doenças sem cura são aquelas que Deus reserva para a invisível medicação de sua farmácia celestial e sua bondade seletiva.

Se bem observarmos, veremos que a dimensão medicinal da nova religiosidade fundamentalista se expande de modo geométrico na proporção igualmente geométrica da difusão de doenças desconhecidas ou mal conhecidas.

Na ideologia popular do que é o poder de Deus, usa Ele o castigo para chamar os homens à salvação. Algo difícil de compreender, como o de fazer-se mau para poder mostrar-se bom. Sem poupar mesmo os que se dizem terrivelmente cristãos.

Bem vistas as coisas, notaremos que o castigo da doença sem cura conhecida é instrumento muito eficaz de uma guerra ultraconservadora contra as grandes mudanças sociais do pós-guerra, especialmente dos últimos 50 anos.

O aumento significativo da liberdade pessoal de cada um, homens e mulheres, a emancipação da mulher, a profunda transformação no conceito de casamento e de família, a antecipação da maturidade das novas gerações, a libertação do discernimento de crianças e jovens, tudo isso fica reduzido à concepção de castigo pelo pecado da ruptura da ordem tradicional, conservadora e iníqua.

Deus está sendo usado, de maneira cruel, pelos oportunistas do mando e do autoritarismo para instituir uma nova sujeição social, em que as pessoas parecem livres, mas são de fato escravas de uma liberdade manipulável.

O novo homem é livre desde que se submeta ao estilo do mando antidemocrático que é o do autoritarismo dos micropoderes que estão em tudo, em todos e em todas as partes. Nesse sentido não é novo, é velho e antissocial, cúmplice das enfermidades que escancaram nossa pobreza de espírito.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "A Política do Brasil Lúmpen e Místico" (Contexto).

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