- Folha de S. Paulo
Maio foi melhor do que se esperava, mas epidemia longa e corte de gasto são risco
Os resultados de indústria e comércio de maio foram melhores do que o horror esperado. Abril teria sido o fundo do poço, diz o chavão. Não teremos uma recuperação em forma de “V” (como a linha de um gráfico com queda e subida rápidas e de mesmo tamanho). Quem sabe, porém, tenhamos uma retomada em forma de anzol, um “U” com a perna direita interrompida pela metade, sem saber se na ponta haverá um peixe ou um pedaço de pau podre.
O anzol já está desenhado nas projeções dos economistas do setor privado. Na média, estima-se que o PIB caia 6,5% neste ano e cresça 3,5% em 2021. Ou seja, não recupera nem metade da produção ou da renda perdidas neste ano de calamidade. Entre os otimistas, os economistas do Itaú calculam que a taxa de desemprego ainda seria de mais de 16% em 2021, bem mais que o dobro da média dos anos de 2012 a 2015. Para piorar, é improvável que a qualidade dos empregos novos seja melhor do que os bicos da pífia recuperação desde 2016.
Ainda estaríamos em um poço fundo. No fim de 2021, o PIB ainda seria uns 6% menor que em 2014 e a renda (PIB) per capita 11% menor. Voltaríamos à pobreza de 2019 apenas no final de 2022. Além do mais, a tese do anzol depende de premissas otimistas, otimismo nos termos de “o mercado”.
Pressupõe-se que o governo vai cortar cerca de meio trilhão das despesas extras deste ano, o grosso delas sendo a soma auxílios emergenciais, complementação de salários e ajuda a estados e municípios. A atividade econômica vai compensar, por si só, tamanho talho na capacidade de consumo?
Os economistas do Bradesco calculam que, em maio de 2020, a renda disponível (salários e benefícios sociais) era 16% MAIOR que em maio de 2019, graças aos auxílios. Nos meses anteriores à crise do vírus, essa diferença em relação ao ano passado era de 7% (tudo em termos nominais: sem descontar a inflação). Quanto vai durar o efeito dessa complementação?
É possível que exista consumo represado e capacidade de consumir estocada (poupança). Famílias remediadas e ricas deixaram de consumir por precaução ou impossibilidade (não gastam em restaurantes, viagens, serviços pessoais etc.). É evidente também que o consumo caiu mais do que os rendimentos.
Parte dessas precauções e impossibilidades não vai desaparecer tão cedo, dada a epidemia longa e mortífera do Brasil.
Houve outras melhoras, decerto, como nas ditas “condições financeiras”. As taxas de juros básicas (no atacado de dinheiro) estão baixas ou contidas. O preço das commodities que sustentam nossas contas externas, o complexo agropecuário-extrativista e seus fornecedores subiu bem desde o tombo de março e estão em nível mais do que razoável, dada a catástrofe mundial.
O dólar está longe dos R$ 4,30 de fevereiro, a R$ 5,3, mas não explodiu além dos R$ 5,90; o risco Brasil (medido pelo CDS) não voltou ao nível historicamente baixo de fevereiro, mas melhorou. A dinheirama que o mundo rico colocou na praça e seus juros negativos persistentes devem ajudar a manter também baixas as taxas por aqui, tudo mais constante.
Resumo da ópera: 1) Não sabemos como a economia vai se comportar com o talho no gasto público, a epidemia duradoura e os problemas decorrentes; 2) As condições sociais ainda vão piorar, dados o desemprego e o corte de auxílios; 3) Na ponta do anzol pode aparecer a complacência na política econômica, “vida que segue”, como na quase estagnação de 2017-2019.
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