- Folha de S. Paulo
Sempre haverá alguém inescrupuloso para levar o discurso maluco a sério
Que youtubers e "digital influencers" defensores do stalinismo e do regime norte-coreano façam sucesso crescente nas redes sociais nos indica que o Brasil (e o mundo) está longe de sair do buraco de fake news e revisionismo em que caiu.
Os cientistas se veem na defensiva, tendo que justificar seu trabalho e suas boas intenções para um público que rejeita progressivamente conceitos básicos como a esfericidade da terra e o funcionamento de vacinas. Na política é mesma coisa: valores e instituições estão sob ataque de charlatães hábeis em seduzir levas de seguidores.
É chato defender instituições liberais. Colocar as regras do jogo acima do desejo de que seu time favorito vença a partida; conceder ao adversário as mesmas prerrogativas que você tem; ser contrário à resolução violenta de discordâncias de ideias.
Muito mais gostoso é sonhar que se é um revolucionário bolchevique prestes a matar pela revolução ou quem sabe um cruzado medieval pronto para a guerra santa. Tudo vale, tudo é permitido.
Em vez de discutir prós e contras de diferentes políticas econômicas, é muito mais excitante tomar partido no conflito abstrato entre grandes grupos antagônicos: e daí fica relevante defender que o genocídio nazista foi muito pior que o soviético ou cambojano.
Veja, os milhões de mortes de Stalin não foram um genocídio; mas o teto de gastos é. Se você defende liberdade de imprensa e de comércio hoje, então você defende a escravidão e o colonialismo de séculos anteriores. Um simplismo moral sem pé nem cabeça substitui qualquer argumento sobre o mundo real.
O papel da ideologia na condução das sociedades é superestimado. Uma tirania terá algum tipo de manto ideológico que a justifique, mas esse virá sempre a reboque do projeto de poder, atendendo às suas necessidades e garantindo apoio popular a ele. O papel que formadores de opinião radicais à esquerda e à direita cumprem é justamente esse: anestesiar seu público consumidor aos desmandos dos políticos que repetirem as palavras certas.
Qual o efeito do sucesso comercial de youtubers stalinistas no Brasil, que levam a panfletagem do totalitarismo de seus decadentes enclaves universitários para um grande público nas redes sociais? Num primeiro momento, não muito. Aumentam um pouco, talvez, as chances eleitorais da direita populista.
Afinal, o discurso paranoico que vê um complô comunista por trás do funcionamento normal da democracia sai fortalecido se existirem comunistas espalhafatosos dizendo absurdos nas redes.
Do conforto de seus sofás, sentem-se verdadeiros revolucionários, soldados do Exército Vermelho, adotam nomes russos para brincar nas redes, sonham com fuzilamentos em massa da burguesia. Essa vaidade inconsequente em larga escala é perigosa.
Quanto mais gente adere à política como faz de conta vaidoso, seja como bolcheviques, revolucionários franceses ou cruzados, menos gente será capaz de reconhecer e preservar as normas e instituições (chatas) de que a nossa liberdade e chance de desenvolvimento social dependem.
Sempre haverá alguém inescrupuloso o bastante para levar o discurso maluco a sério se isso lhe beneficiar. Houve um tempo em que Olavo de Carvalho era apenas uma figura bizarra com um séquito de alunos online. Hoje, as ideias que ele copia da extrema direita americana ajudam a formular a política externa brasileira e a justificar o preconceito aqui no Brasil. Do jeito qu e as coisas caminham, a Coreia do Norte ainda será aqui. E ela nem será tão ruim se comparada ao que poderá vir depois...
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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