As falas, porém, não se limitaram à
projeção de um caldo multinacional de quimeras. Confrontados, os discursos de
Xi Jinping (China), Vladimir Putin (Rússia), Emmanuel Macron (França), Donald
Trump (EUA) e Jair Bolsonaro deixam claro que apenas os dois últimos fizeram da
pandemia a deixa para a fantasia do inimigo externo. Talvez não seja
coincidência que Estados Unidos e Brasil sejam aqueles que, neste grupo, registram
tanto o maior número absoluto quanto proporcional de mortos pela doença.
Dos cinco chefes de Estado, Xi Jinping foi quem mais falou da pandemia. Anteviu
o que seria o discurso de Trump, que o antecedeu com 20 menções à China, mais
do que o dobro de todas as referências à doença, às suas consequências e às
providências tomadas.
Ante um Trump que resume o drama mais
devastador da humanidade desde a criação da ONU ao “vírus chinês”, Xi citou 13
vezes a covid-19, doença que teve uma única menção no discurso do presidente
americano, e nove, o vírus, a despeito da nacionalidade imputada. E
propagandeou a “diplomacia da vacina” para substituir a das máscaras e expurgar
o espectro da culpa chinesa.
Sem enfrentar as mesmas imputações de Xi,
Putin foi pelo mesmo rumo. As menções do presidente russo à doença superaram,
com folga, todas as suas demais obsessões sobre segurança cibernética, armas
químicas e nucleares e fronteiras. Se deixou explícita uma disputa ali foi
aquela com a China pela diplomacia da vacina. Um (Xi) tratou dela como bem
público e se comprometeu a dar prioridade de acesso a países em desenvolvimento
e o outro (Putin), ofereceu-a de graça aos funcionários das Nações Unidas.
É bem verdade que são dois chefes de Estado que não enfrentam esse problema
chamado eleição. Podem se dar ao luxo de exibir altruísmo ao mundo e a seus
nacionais num contraponto a um presidente, como Trump, que não baixa as armas
nem sob uma pandemia. Tem alguma outra doença em curso, além da covid-19, a
assolar a humanidade quando o candidato à reeleição na mais rica democracia do
mundo precisa contornar uma doença que já tirou a vida de 200 mil cidadãos para
ganhar a disputa.
Uma patologia da mesma família atinge o
Brasil. O chefe de Estado, mesmo não estando em campanha eleitoral, precisa
fazer igual contorcionismo para falar sobre a doença que levou seu país, com
138 mil mortos, a ultrapassar, em proporção de vítimas, os EUA de sua
inspiração.
Não faltam menções apenas à doença no
discurso de Trump e Bolsonaro. Inexistem referências à pobreza ou à
desigualdade. Talvez não precisassem imitar Macron que, em seu discurso
quilométrico (sete vezes maior do que o de Trump e quatro vezes maior que o de
Bolsonaro), fez 30 referências à doença, e nove aos seus efeitos sobre pobreza
e desigualdade.
Trump, no entanto, limitou-se a dizer que
produziu um número recorde de ventiladores, reduziu o índice de fatalidade e
está empenhado na busca por uma vacina. No resto do discurso, a doença foi
apenas um trampolim para culpar a China e a Organização Mundial de Saúde. Em
plena pandemia, achou por bem informar ao distinto público que os EUA gastaram
U$ 2,5 trilhões nos últimos quatro anos (mais do que as despesas feitas para o
combate à doença e a seus efeitos) em defesa: “Temos as Forças Armadas mais
poderosas do mundo”.
Bolsonaro seguiu a mesma trilha. Fez
quatro menções aos militares e uma única - equivocada - sobre médicos e
enfermeiras que estão no campo de batalha da pandemia (“[O governo] estimulou,
ouvindo profissionais de saúde, o tratamento precoce da doença”).
Quem assistiu ao discurso de Bolsonaro não tomou conhecimento sobre iniciativas
que poderiam ter contido a doença, como, por exemplo, uma testagem maciça, mas
foi informado da presença militar em Roraima que, dias antes, servira de
palanque para o secretário de Estado, Mike Pompeo, se dirigir aos eleitores
anti-Maduro da Flórida.
Em
2019 os militares tinham ficado ausentes do tresloucado discurso com o qual
Bolsonaro se apresentou ao mundo numa guerra santa contra o socialismo de Fidel
Castro. Desta vez, o comando de caça aos comunistas ficou de fora - assim como
do discurso de Trump - e os militares ocuparam o espaço.
Saem os socialistas e entram aqueles que
ameaçam a soberania brasileira na Amazônia. O tema, que tinha ficado ausente do
discurso de 2019, teve, desta vez, sete menções - todas contestadas por quem
entende de floresta.
O peso que deu ao tema só foi comparável
ao de Xi, sendo que o presidente chinês se comprometeu com metas ousadas de
redução de gases-estufa enquanto Bolsonaro só mostrou compromisso com a
desinformação. Nem polemizar conseguiu. Ao contrário de 2019, quando Macron fez
do clima e da Amazônia seu cavalo de batalha, com mais de 20 menções ao tema,
desta vez o presidente francês citou os embaraços climáticos de passagem e, com
a arapuca já armada no acordo da União Europeia com o Mercosul, passou reto
diante da Amazônia.
O discurso soberanista não devolve as
onças-pintadas ou os milhares de hectares queimados nem contém a ameaça sobre
centros de excelência na produção de dados sobre as florestas brasileiras. Sem
defesa para a covid-19, no entanto, foi o que restou a Bolsonaro.
A
aposta de Trump de que o “vírus chinês” o eximirá de suas responsabilidades
será testada em pouco mais de um mês. A de Bolsonaro ainda tardará, mas
esquenta os motores contra as “instituições internacionais” de preservação
ambiental. Busca um inimigo externo para a dificuldade de o Brasil atrair
capital e gerar emprego. Na tentativa de copiar Trump, mimetiza Nicolás Maduro.
Ainda que tenha maioria parlamentar, dois ministros a mais no Supremo e avance
sobre instituições de controle, o presidente pode acabar, como Maduro, só com
seus fardados na batalha. A palavra “democracia”, mencionada até por Xi e
Putin, não apareceu na fala de Bolsonaro - nem na de Trump.
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