Ícone. Foi muito
apropriado o uso deste termo por jornais para designar a juíza da Suprema Corte
americana Ruth Bader Ginsburg, falecida há uma semana. RBG, como era conhecida,
foi uma das mais importantes figuras da Justiça americana. Mais até do que um
ícone. Uma heroína que trabalhou a vida inteira para mudar a legislação nos
pontos em que discriminava a mulher. “RBG transformou os papéis de homens e
mulheres na sociedade”, disse a jornalista Linda Greenhouse, que cobre a
Suprema Corte americana há 30 anos para o “New York Times”.
Estudante de Direito na
Universidade Harvard nos anos 50, quando a escola tinha apenas nove mulheres
num grupo de 500 alunos, RBG entendeu cedo que ser mulher era obstáculo para
quase tudo. Seu engajamento definitivo em favor da emancipação feminina ocorreu
alguns anos depois, quando, graduada, tentou obter um emprego nos escritórios
de advocacia de Nova York. Foi rejeitada por todos. “Não contratamos mulheres.”
Virou professora e, depois, ativista na União Americana pelas Liberdades Civis
(ACLU).
Se o gatilho que
disparou sua obsessão foi o fato de ela própria ter sido vítima de
discriminação, é verdade que um germe já havia sido introduzido pela sua mãe,
de quem ouviu um conselho que repetiu inúmeras vezes. “Seja uma dama e seja
independente”. Ser uma dama significava jamais abrir mão de sua condição
feminina. Ser independente queria dizer lutar por condições iguais às dos
homens para se emancipar.
RBG iniciou sua carreira
de advogada nos anos 70, na ACLU. Suas causas foram sempre contra leis que
discriminavam mulheres. Durante anos advogou diante da própria Suprema Corte.
Ela entendia que “a divisão por gêneros não ajuda a manter a mulher num
pedestal, mas sim numa jaula”. Ganhou quase todas as questões que levou aos
tribunais e acabou se transformando numa das maiores referências do feminismo,
inspiração para homens e mulheres em todo o mundo.
Ao ser indicada para a
Suprema Corte pelo então presidente Bill Clinton, em 1993, RBG passou da
condição de ícone para a de pop star. Sua imagem frágil, tinha 1,50m, seu rosto
fino e seus óculos grandes e grossos se tornaram parte inseparável da paisagem
feminista. Estava em todas. Percebia que, quanto mais se expunha, mais passava
sua mensagem. Não houve questão que tratasse da condição legal da mulher de que
ela não participasse e, quase sempre, ganhasse. Fez história mesmo nas causas
que perdeu.
Em 2006, a Suprema Corte
julgou o caso de Lilly Ledbetter contra a Goodyear, que alegava ter recebido
salário menor do que funcionários homens que exerciam função igual. Como a
petição foi feita depois da aposentadoria, a Corte entendeu que o prazo
caducara e negou equiparação retroativa. O voto vencido de RBG mudaria a
legislação. Ela disse que as mulheres “são vítimas da discriminação salarial” e
exortou o Congresso a corrigir o erro cometido pela Corte Suprema. O Congresso
corrigiu o erro e aprovou lei definindo que crimes de discriminação contra
mulheres nunca mais vencerão por decurso de prazo.
O trabalho infatigável
de RBG ajudou a dar visibilidade a questões muitas vezes ignoradas, que
poderiam resultar em aumento de riquezas e renda em todo o mundo. Um estudo do
Instituto McKinsey, de 2015, demonstrou que, se as mulheres fossem incorporadas
ao mercado de trabalho regular, em condições iguais às dos homens, US$ 12
trilhões (R$ 66 tri) seriam acrescidos à economia global em dez anos, um
aumento de 11% para o PIB planetário.
A desigualdade de gênero é quase tão limitadora e opressora quanto o racismo. Só será derrotada se for combatida por homens e mulheres indistinta e permanentemente. Ruth Bader Ginsburg gostava de repetir uma frase da primeira feminista americana, a abolicionista Sarah Grimke (1792-1873). “Não peço nenhum favor para o meu sexo. Peço apenas aos meus irmãos que tirem seus pés dos nossos pescoços”. RBG passou sua vida tratando de tirar pés de homens dos pescoços de mulheres. Ela morreu, mas sua luta continua.
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