A
esperança de que Bolsonaro não embarque em uma nova aventura expansionista não
se deve ao seu discernimento
Com
o resultado do terceiro trimestre, sabemos que a recuperação dentro de 2020
superou todas as expectativas, reduzindo a queda do PIB a algo em torno de
4,5%. As projeções de consenso da última semana informam que em 2021 o PIB
deverá crescer em torno de 3,5%, mas não esclarecem que essa taxa é próxima do
carry-over de 2020. Ou seja, há um crescimento de 3,5% entre 2020 e 2021, mas
praticamente não há crescimento dentro de 2021. Para amenizar as preocupações,
argumenta-se que a poupança dos ricos acumulada durante o afastamento social
compensará a queda da demanda dos pobres, acarretada pelo fim da ajuda
emergencial. Tenho dificuldades enormes com esse argumento. Com uma taxa de
desemprego podendo chegar no pico a 20%, é difícil apostar no consumo dos mais
pobres e, com a incerteza elevada, é difícil que os ricos não se protejam,
guardando boa parte do que acumularam.
O fato é que a rápida recuperação – inegavelmente positiva – deixou uma herança fiscal que dificulta a continuidade do crescimento em 2021. Devido ao risco de insolvência do governo, o nível de incerteza da economia atingiu um recorde, inibindo os investimentos em capital fixo. Uma forma de aferir como a percepção deste risco se transmite é olhando para os prêmios de risco em ativos financeiros em mercados muito líquidos, como os de juros e de câmbio.
Com
muito mais habilidade do que eu, em artigo recente Marcio Garcia demonstrou
elegantemente o que se passou. Ele definiu a inclinação da curva de juros como
a diferença entre as taxas de 10 e de um ano, e superpôs esta série ao câmbio
nominal, medido em R$/US$. Iniciou sua série em junho 2019, quando o mercado
ainda acreditava que o teto de gastos seria cumprido e o risco de insolvência
era mais baixo, e a estendeu por todo o ano de 2020. É notável como estas duas
séries caminham juntas. Nos dois casos, o prêmio de risco dá um salto
semelhante tão logo se configura a percepção de que cresceu o risco de
insolvência.
O
aumento das taxas de juros em operações mais longas tem importância porque
eleva a dificuldade na administração da dívida, cujo prazo médio de vencimento
deverá cair abruptamente, expondo-nos ao risco da repressão financeira,
piorando a curva de juros e o comportamento do câmbio. Não há espaço neste
artigo para tratar deste problema, por isso me restrinjo ao câmbio. A
depreciação cambial, que desde janeiro de 2020 acumula quase 30%, é a maior
causa do aumento da inflação nos últimos meses.
Não
deveria ser assim. Afinal, a economia deprimida tenderia a reduzir o repasse do
câmbio aos preços. Mas não é esse o caso dos preços de alimentos, como a soja e
derivados, carne e arroz, entre outros, que são exportáveis. Seus produtores
repassam a depreciação cambial aos preços domésticos e, se a demanda cair,
exportam todo o excedente. Os reajuste dos preços destes produtos nos armazéns
e supermercados produziram nos últimos 12 meses uma inflação de quase 18% no
item “alimentação no domicílio”. Não teria grande importância se a taxa de
desemprego, que até setembro já havia atingido 14,8%, caísse bastante em 2021,
e se houvesse um aumento da renda real. No entanto, sem a ajuda emergencial, a
recuperação lenta ou mesmo a estagnação da economia dentro de 2021 não dá
perspectivas de uma melhora no mercado de trabalho.
Há
alguns meses escrevi sobre uma reação dos indivíduos a ganhos ou perdas
imprevistas, cuja autoria erradamente atribuí a Richard Thaler, quando ele
próprio reconhece que a autoria é de Kahneman e Tversky. Com o devido pedido de
desculpa aos verdadeiros autores, repito o enunciado daquela conjectura: “a
felicidade decorrente de um ganho inesperado é menor do que o sofrimento de uma
perda inesperada”. Da mesma forma como a ajuda emergencial elevou a
popularidade de Bolsonaro, seu encerramento deve derrubá-la o que, aliás, já
está ocorrendo. Como reagirá o presidente diante de uma “queda inesperada” de
sua popularidade, com a taxa de desemprego elevada, a economia estagnada e com
uma inflação de alimentos que corrói o poder aquisitivo das classes de renda
mais baixas junto às quais era popular?
Optará
pela obediência ao teto de gastos ou terá preferência por gastar, aumentando
sua popularidade? A esperança de que ele não embarque em uma nova aventura
expansionista não se deve ao seu discernimento, que em matéria de economia é
reconhecidamente baixo, e sim ao medo de ser punido pela depreciação cambial,
que eleva a inflação.
*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário