O
ocupante da Casa Branca nem sequer precisa simular que trabalha
Natal
não é para amadores, e poucos percebem os desvios que cometem quando
hipnotizados pelo festivo arrastão. Basta citar um único excesso coletivo da
vida brasileira a cada dezembro. Desde que as luzinhas de decoração vindas da
China passaram a custar uma ninharia, elas engolem prédios, lojas, ruas,
interiores de casas, postes e praças. Você acorda de manhã, e as árvores que
até a véspera pareciam árvores sumiram. Viraram espantalhos, assombrações.
Estão de tronco e galhos estrangulados por fileiras cerradas dessas luzinhas
que piscam dia e noite, montadas com diligência para lhes esconder qualquer
vestígio de natureza. Poderiam fazer parte de algum sonho natalino do ministro
do Meio Ambiente, Ricardo Salles, mas não fazem mal a ninguém. Apenas deveriam
ser usadas com mais temperança.
Nos Estados Unidos de Donald Trump, Natal é coisa séria. “Se eu me tornar presidente”, prometeu ao longo da campanha de 2016, “vamos voltar a nos cumprimentar desejando Feliz Natal, e podem esquecer o Boas Festas”. Equiparava esse cumprimento genérico e inclusivo a um ataque contra as tradições cristãs por parte de terroristas politicamente corretos. Também na campanha de 2020, o presidente alertou seus seguidores para o risco de o Natal estar sob ataque. Caso o democrata Joe Biden fosse eleito, ele seria capaz de abolir as festividades em todo o país.
Como
se sabe, Biden venceu, será o segundo presidente católico dos EUA a partir de
20 de janeiro (John Kennedy foi o primeiro) e tem problemas concretos para lhe
tirar o sono. Na questão natalina, Trump deveria ter olhado com mais afinco à
sua volta, pois o perigo morava na própria Casa Branca. Fitas gravadas à
sorrelfa em 2018, e vazadas este ano por uma ex- amiga da primeira-dama,
atestam a impaciência de Melania com a tarefa que lhe cabia. Como o linguajar
usado pela First Lady foi pouco festivo, cabem asteriscos. “Eu ralo pra c******
com essa coisa de Natal, apesar de ninguém dar p**** nenhuma pro Natal ou pra
decoração natalina. Mas sou obrigada a fazê-lo, certo?”, desabafou em tom de
queixa por ter de responder a perguntas sobre crianças enjauladas na fronteira
quando seu tempo estava sendo tomado pelo planejamento da decoração.
Naquele
Natal, Melania, toda de preto para a filmagem enviada às mídias, inspecionou
lentamente a obra finalizada, a começar pela galeria presidencial que decorara
com 40 imensas árvores vermelho-sangue, destituídas de qualquer adereço. Em
dois outros salões nobres da Presidência, foram instaladas 29 árvores cobertas
só de ornamentos escarlates. Foi um auê, com a inevitável enxurrada de memes.
Houve quem visse na decoração satânica um quê de Jack Nicholson em “O
iluminado”, o clássico de Stanley Kubrick baseado no romance homônimo de
Stephen King.
Esta
semana o presidente e a primeira-dama inauguraram os festejos natalinos de
2020. Teve pompa, circunstância, não teve máscaras nem distanciamento social, e
haverá várias recepções para convidados. Na Casa Branca, não é bem-vinda a
lembrança de que o país está de joelhos pela Covid. A decoração deste final de
feira foi mais convencional, mas nem por isso mais comedida — nada é excessivo,
nenhuma exuberância é over para este casal presidencial.
O
primeiro reinado de Trump termina em poucas semanas, e já passa da hora de o
mundo não descartar como tolas bravatas a verborragia de superlativos do
presidente. Eugene R. Fidell, pesquisador sênior da Escola de Direito da
Universidade Yale, recomenda levar a sério alguns delírios verbais do
comandante-em-chefe, sobretudo quando são repetidos à exaustão. Não raro Trump
proclama de antemão exatamente o que pensa em fazer. E faz, pegando no contrapé
o senso comum universal.
Em
poucas semanas de entrincheiramento na Casa Branca após a derrota de 3 de
novembro, ele conseguiu o impensável: emplacou uma narrativa ficcional de uma
nota só — a eleição foi roubada — e mantém galvanizados os 74 milhões de
americanos que o inundaram de votos. Dessa fantasia não arredará pé, até porque
ela lhe permite deletar a realidade. É provável que historiadores do futuro
tenham dificuldade em compreender como essa narrativa surrealista tenha durado
mais do que cinco segundos na longeva democracia americana.
Mas
é por meio dessa ficção que Trump já conseguiu arrecadar mais de US$ 200
milhões desde a derrocada nas urnas — oficialmente as doações se destinam a
financiar a blitz judicial de um circo de advogados farsescos, que simulam
reverter a alegada fraude. Em breve, porém, o mote “estamos tentando ficar mais
quatro anos” precisará ser aposentado. As doações, então, se voltarão a uma
hipotética “reeleição triunfal” em 2024.
Embora tudo isso seja ficcional, as doações, essas sim, são em dinheiro de verdade. Assim como são concretos os 75% do total já reservados para uso pessoal de Trump. Natal gordo, apesar da derrota. O ocupante da Casa Branca nem sequer ainda precisa simular que trabalha. Já conseguiu transtornar o país como seu vigarista-em-chefe.
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