sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Humberto Saccomandi - Vírus da concentração econômica vai persistir

- Valor Econômico

Desigualdade entre pessoas, empresas e países vai crescer

O início da vacinação contra a covid-19 traz uma luz de esperança de que um dos períodos mais difíceis desde a Segunda Guerra Mundial finalmente possa ser superado. Mas esse processo será longo e até lá a vacinação vai reforçar um dos efeitos mais perversos da pandemia: o aumento brutal da concentração econômica, entre pessoas, empresas e países. As cicatrizes serão profundas e durarão por muito tempo.

A vacinação acentuará o processo de concentração econômica ao favorecer os países mais ricos e poderosos, que vacinarão antes as suas populações. O primeiro país a aprovar uma vacina que passou pelos processos convencionais de verificação foi o Reino Unido, que já iniciou a vacinação. O Canadá foi o segundo. Os EUA devem aprovar a primeira vacina nos próximos dias. A União Europeia (UE), ainda neste mês.

A primeira vacina aprovada no Ocidente foi a da Pfizer-BioNTech, que é proibitiva para a maior parte do mundo devido à necessidade de mantê-la refrigerada a -70ºC. A segunda deverá ser a da Moderna, que também precisa dessa refrigeração. Essas vacinas foram adquiridas quase que exclusivamente por países ricos.

Especula-se (não há informação oficial) que a China já iniciou um programa de vacinação em massa com vacinas de suas empresas, que ainda não foram certificadas. A Rússia acelerou a aprovação de uma vacina local (antes de concluídos os testes clínicos) e já iniciou a vacinação, mas o processo tem sido lento devido à capacidade de produção limitada.

A distribuição desigual das vacinas contribuirá assim para reforçar o processo de concentração econômica gerado pela covid-19. Enquanto a maior parte do mundo ainda permanecerá mergulhada na pandemia ao longo de 2021, países ricos conseguirão uma taxa elevada de imunização possivelmente em algum momento do segundo trimestre.

Ter cidadãos vacinados permitirá que as empresas desses países possam funcionar normalmente, que setores importantes, como o de turismo, sejam reativados, que os empregos voltem, e a economia se recupere. Os benefícios do controle da epidemia são evidentes nos países que conseguiram isso antes mesmo da vacina, como a China, cuja economia já está em aceleração.

“As disparidades causadas pela crise da covid-19 são gritantes, e a produção e distribuição de vacinas provavelmente enfatizarão a capacidade limitada da maioria dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos de responder à crise”, afirmou a Unctad em relatório neste mês.

Mas a vacinação é apenas um de uma série de fatores que vêm estimulando o acúmulo de riqueza e de poder econômico num número restrito de pessoas, empresas e países.

O fator mais óbvio é a perda de renda dos trabalhadores cujas atividades foram mais atingidas. Demissões e redução de horas trabalhadas levaram à contração de 10,7% da massa salarial global nos primeiros 9 meses deste ano (em relação ao mesmo período de 2019), segundo estimativa a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Isso significa uma perda de US$ 3,5 trilhões em salário. Todos os países ricos e alguns países de renda média adotaram programas de apoio à renda do trabalhador. No caso do Brasil, esse programa acaba neste mês. Já muitos países europeus prorrogaram os seus.

Em contraste com essa perda de renda de uma parte significativa da população mundial, uma minoria ganhou dinheiro. A capitalização de mercado global (isto é, o valor das empresas listadas em bolsa) cresceu de US$ 66,33 trilhões (um ano atrás) para US$ 78,74 trilhões (nessa terça-feira), segundo estimativa da S&P. Ou seja, um pequeno grupo de pessoas com aplicações em bolsa ficou US$ 12 trilhões mais rico.

A Black Friday também expôs esse processo de concentração. Enquanto as vendas de lojas físicas caíram em relação a 2019, as vendas online dispararam em todos os países, concentradas em umas poucas plataformas digitais. Isso era uma tendência que já vinha ocorrendo, mas que se acelerou com a pandemia.

Em geral, companhias que estavam capitalizadas ou que tiveram acesso a crédito e/ou ajuda do Estado conseguiram resistir bem à crise da covid-19. Mas essas em geral são empresas grandes. Pequenas e médias empresas estão sofrendo mais. Muitas acabam fechando, o que cede fatia de mercados para concorrentes, reforçando a concentração de mercado.

Assim como os países ricos conseguiram ajudar mais os seus cidadãos ao longo da crise, conseguiram também apoiar mais as suas empresas. Mesmo entre os países ricos, Itália e Espanha reclamaram por não terem espaço fiscal para socorrer suas empresas do mesmo modo como outros países europeus estavam fazendo, o que levou a UE a afrouxar suas regras fiscais.

O fato de alguns países conseguirem apoiar suas empresas e outros não acaba gerando um desequilíbrio na concorrência, com grande vantagem competitiva para as empresas que receberam apoio estatal. A Lufthansa recebeu um pacote de socorro financeiro de € 9 bilhões (cerca de R$ 50 bilhões) do governo alemão, o que ajudará a empresa a concorrer numa situação financeira melhor com companhias aéreas que receberam menos ou nada. O pacote de apoio às aéreas no Brasil, por exemplo, ficou em R$ 6 bilhões. Se houver uma consolidação nesse setor, empresas mais sólidas acabarão absorvendo as mais fracas.

A pandemia deverá ainda favorecer a concentração de riqueza no futuro. Crianças de países ricos (ou crianças ricas em países pobres) tiveram prejuízo muito menor à sua educação do que crianças pobres de qualquer lugar. Em muitos domicílios brasileiros, a falta de internet e de computador impediu que as crianças acompanhassem o ensino à distância. É difícil ainda mensurar esse dano.

Esse processo de concentração econômica está levando a um forte aumento da desigualdade. A maior parte do mundo ficou mais pobre com a epidemia, mas algumas pessoas, empresas ou países perderam ou vão perder mais que outros. Após décadas de melhora, a pobreza no mundo vai aumentar neste ano.

A concentração econômica tende a reduzir a concorrência entre as empresas, o que afeta a inovação e a produtividade.

A vacinação começará a tirar o mundo da pandemia, mas os efeitos negativos vão persistir por muito tempo ainda. E parte deles talvez seja permanente.

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