Como
previu o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta, chegamos ao final do ano com
180 mil mortos. Novamente, precisamos do distanciamento social, enquanto não
chega a vacina
Tem
momentos da política que Brasília descola do Brasil, não a dos candangos que
nasceram na cidade e nela ganham o pão com o suor de cada dia, mas aquela que
todos conhecem pela arquitetura monumental de Oscar Niemeyer: a da Esplanada
dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes. Esta semana foi um desses
momentos, com o centro político e administrativo do país completamente
descolado da realidade nacional e voltado para a disputa pelo controle do
Congresso, embora a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado estejam
marcada para 1º. de fevereiro. O drama do país é a segunda onda da pandemia do
novo coronavírus.
Cercado
de áulicos por sete lados — o oitavo, na Rosa dos Ventos, é a trincheira dos
filhos —, Bolsonaro parece aquele Presidente prisioneiro de uma jaula de
cristal a que se referia o economista Carlos Mattus, o ex-ministro do
Planejamento de Salvador Allende, o caso clássico do líder isolado, prisioneiro
da Corte “que controla os acessos à sua importante personalidade”. O presidente
sem “vida privada, sempre na vitrine da opinião pública”, com a diferença de
que não precisa representar um papel, Bolsonaro aparece ante os cidadãos que
representa e dirige como realmente é: um líder sem empatia, indiferente ao luto
dos familiares e amigos das vítimas da pandemia do novo coranavírus, cujo
carisma está associado à truculência e ao conservadorismo.
Ontem, quando atingimos a marca dos quase 180 mil mortos e 6,78 milhões de infectados, Bolsonaro anunciou o “finalzinho” da “gripezinha”, ao inaugurar o vão central de uma ponte em Porto Alegre (RS). No mesmo dia, a segunda onda da pandemia do novo coronavírus atingiu 21 estados e o Distrito Federal, pressionando o sistema de saúde pública com uma velocidade muito superior à primeira. Para não desmentir o chefe, os militares que aparelharam o Ministério da Saúde atrasam a divulgação de dados, minimizam a expansão da doença e fazem uma ginástica danada para escamotear o que todo mundo já sabe: não fizeram o dever de casa e a vacinação em massa contra a COVID-19 aqui no Brasil vai atrasar, e muito.
No
mundo, a segunda onda atinge com força a Europa, a ponto de a primeira-ministra
Angela Merkel fazer um apelo dramático aos alemães, para que façam o isolamento
social. Nos Estados Unidos, epicentro da segunda onda, a FDA, agência
reguladora norte-americana, aprovou a toque de caixa a utilização da vacina da
Pfizer-Biontech, justamente a vacina que havia sido descartada pelo Ministério
da Saúde, porque sua logística exigia armazenamento 70º abaixo de zero. Agora,
o ministro Eduardo Pazuello, um general de divisão do Exército, supostamente
especialista em logística, tenta comprar a vacina que lhe fora oferecida e
recusou em agosto passado.
Desculpe-me
o trocadilho, mas Pazuello me lembra o Sargento Tainha. Como nas estórias em
quadrinhos do Recruta Zero, erros de conceito costumam levar qualquer
estratégia ao desastre. Além do conceito correto, uma estratégia exitosa
pressupõe, ainda, um método adequado e um ambiente favorável. A militarização
do Ministério da Saúde foi um erro de conceito, não tem a menor chance de dar
certo. Os métodos autoritários, centralizadores e sem transparência contribuem
ainda mais para o fracasso, além de se somarem ao ambiente desfavorável criado
pelo negacionismo do presidente Jair Bolsonaro, tanto na sociedade como na
própria estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS).
Como previu o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta, chegamos ao final do ano com 180 mil mortos. Como no começo da pandemia, novamente precisamos do distanciamento social e do uso generalizado das máscaras de proteção individual para conter a expansão da pandemia e evitar o colapso dos hospitais, enquanto não chega a vacina. Felizmente, a corrida mundial para fabricá-la está chegando ao final. O conhecimento acumulado no caso da SARS-CoV-1 e a cooperação científica mundial, com destaque para a divulgação, pelos chineses, do sequenciamento genético da SARS-CoV-2, possibilitaram o desenvolvimento de 80 vacinas, que estão sendo testadas em todo o mundo. Apostar apenas numa delas, no caso, a vacina de AstraZeneca-Oxford, como fez Bolsonaro, foi um tiro pela culatra. Custava nada manter a parceria com São Paulo; afinal, quem vai sair na frente mesmo é a Argentina, cujo presidente, Alberto Fernández, comprou a vacina russa Sputinick V e será o primeiro a ser vacinado, antes do Natal, para mostrar que o medicamento é seguro.
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