sábado, 25 de julho de 2020

Marco Aurélio Nogueira* - Crise e transformação da democracia

- O Estado de S.Paulo

Um governo reacionário e negacionista agravou tragicamente o que já estava ruim

A mudança constante é companheira de viagem da democracia. Quanto mais complexas ficam as sociedades, mais se acentua a dinâmica democrática e aumentam suas tensões internas.

Isso dificulta a compreensão da “crise da democracia”, hoje proclamada mundo afora. Aquilo que sempre se transforma não estaria em crise permanente, reorganizando-se sem cessar? Se novos atores entram em cena e as instituições precisam se adaptar aos novos ambientes socioculturais, por que a democracia permaneceria “estável”?

Aquilo que se transforma não o faz necessariamente em sentido positivo. Crises não são produtos automáticos: podem derivar, por exemplo, de um golpe ditatorial, que silencia o que estava em mudança e altera o fluxo da vida. Os novos tempos podem ser sombrios, desorganizar mais que organizar, fazendo as “novidades” acentuarem o que não funciona a contento, implicando que as instituições e as práticas políticas não produzam bons resultados.

A democracia está hoje desafiada. Há uma crise no plano sistêmico, institucional, provocada pela disjunção entre a vida e os sistemas, pela “desconstrução” dos partidos e das lideranças políticas. As organizações políticas tradicionais e o modo usual de fazer política colidem com o modo como as pessoas vivem. O “sistema” não entrega o que dele se espera. As injustiças, a desigualdade, o racismo, o sexismo, que se evidenciam sem parar, fazem a cidadania entrar em atrito aberto com o que está instituído. Sempre foi assim, mas nos últimos anos, ao lado do aumento da insegurança e do medo paranoico, houve uma ampliação da insatisfação e da disposição de contestar.

Há também uma crise de valores: a ideia de representação perdeu atração e a política institucional se desvalorizou aos olhos dos cidadãos. O desejo de liberdade e participação faz vibrar a cultura democrática, mas não se compõe com o sistema político vigente. Ao contrário, os cidadãos veem nele uma importante causa dos males. Assentados quase sempre nos interesses econômico-sociais mais poderosos, os governos não conseguem agir em benefício dos interesses gerais.

O principal fator que explica essa crise tem que ver com a complexidade da sociedade atual, que problematizou os mecanismos de formação da vontade coletiva e de tomada de decisões. A globalização capitalista, por sua vez, reduziu a autonomia relativa dos Estados-nação e impôs uma pauta única para a gestão da economia, agravando as disfunções sistêmicas. Como a estrutura social se recompôs, embaralharam-se as identidades classistas, transferindo problemas de reconhecimento e estabilidade para os partidos, que sempre controlaram o jogo político. Não só a democracia, mas tudo o que está “organizado” (a família, a escola, a empresa) entrou em crise.

Líderes e movimentos “desgarrados” das tradições democráticas passaram a corroer o sistema político por dentro, pondo em curso uma degradação nominalmente democrática da democracia. Um veneno tóxico começou a ser injetado cotidianamente na cidadania e na opinião pública.

Num ambiente mais complexo e menos democrático, o Estado – como aparelho de intervenção, coordenação e regulação – perdeu eficácia. A atuação dos governos e dos serviços públicos fica com custos mais elevados, sem que com isso se obtenham melhores resultados.

Esse quadro foi dramatizado pela pandemia, que evidenciou a distância existente entre o Estado político-administrativo e a população. Os sistemas nacionais de saúde foram postos à prova e em muitos deles faltou coordenação, um problema de liderança política e visão estratégica.

É esse o caso brasileiro. A presença de um governo reacionário e negacionista agravou tragicamente o que já estava ruim. Filho da crise, explora o discurso antissistema, que ressoa socialmente, e se aproveita da desorganização política dos democratas. Desqualificado, sem base parlamentar nem plano de ação, viu-se diante da necessidade de fazer que o sistema funcione. Não está dando certo.

O clima criado pelos “iliberais” não é sem consequências. Favorece a expansão de uma zona contaminada no próprio campo democrático, dificultando sua autoconsciência e sua organização. Paralisados pelas dificuldades, os democratas giram em torno de si próprios, muitas vezes brigando com sua sombra e autoimagem. Dispersam-se, quando deveriam se unir.

Parte do descontentamento e da indignação que move os cidadãos tem que ver com o fato de o sistema existente não prover resultados que atendam às expectativas sociais. As pessoas sentem-se desprotegidas, inseguras, carregadas de expectativas que não são atendidas pela política. A exasperação social bate à porta.

O sistema político, com seus partidos e atores, não tem gás para formular um programa de ação e uma articulação que recomponha a governabilidade e reforme as instituições. A sociedade terá de se movimentar, o que a crise sanitária dificulta.

A democracia está em crise. Mas é o único caminho que temos para explorar.

* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp

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