Às vésperas de nova onda da pandemia e a dezesseis meses das eleições presidenciais, o ponto em discussão é a recepção do quadro atual como permanente ou transitório. Os efeitos da terceira onda podem, ainda, ser mitigados, ou estamos condenados a experimentar o pior? A eleição presidencial de 2022 será, necessariamente, um terceiro turno de 2018, ou pode haver outro desfecho, além de reeleição ou revanche? A semana encerra-se com respostas distintas, dadas por atores políticos da esquerda. O contraste pode ser compreendido de diversas formas. Sugiro, a seguir, uma delas.
Quem aprendeu a pensar na política como o
território privilegiado da ação direta tende a ver o tempo como adversário.
Sente ímpeto de desafiá-lo e usa como hino o “quem sabe faz a hora”. Sabendo o
que é certo e errado, usa a pressuposta sapiência para fabricar experiências
exemplares que façam acontecer.
Diversamente, quem aprendeu a pensar a
política como o território da representação segue, nela, o lema existencial de
Mário Lago e faz “(...) um acordo com o tempo: nem ele me persegue, nem eu fujo
dele, um dia a gente se encontra”. Ciente da própria ignorância, sempre achará
mais importante conseguir, com sua ação, uma agregação do que o reconhecimento
de que está com a razão.
A parte da esquerda que privilegia a ação
direta lançou-se às ruas para enfrentar Bolsonaro no seu território. A
imprudência (ou cálculo eleitoral míope) dos que aceitam as provocações da
extrema-direita constrange governadores num momento em que a pandemia ameaça se
agravar e a AGU ingressa, performaticamente, no STF, questionando a autoridade
daqueles para decretar restrições e punições a aglomerações. O recado é
“Bolsonaro mata mais que o vírus”. Essa sugestão ignora o espectro da terceira
onda e sugere que a pandemia é politicamente orientada. Nessa meia-verdade, a
metade não veraz é a grande novidade: o vírus passou a ser o inimigo número 2 dessa
parte da oposição de esquerda, que se pretende “sem medo”. O medo é um
sentimento humano. A temeridade é coisa de quem se afasta da humanidade,
colocando-se acima dela. É assim que se mata ou se suicida por uma
"causa" que, vista de perto, pode ser fanatismo ou interesse como
outro qualquer. Há momentos, como o de agora, em que heroísmo e demagogia andam
de braços dados e matam da mesma forma.
É incomensurável o efeito sanitário desse
rebaixamento de status do vírus, baseado em meia-verdade. Mas o seu sentido político
negativo pode ser percebido: diferenças entre bolsonaristas e essa parte da
esquerda estão ainda mais explícitas no campo político-eleitoral e cada vez
menos nítidas no da saúde pública. E nem adianta o resto da oposição se julgar
isenta de responsabilização pelo passo em falso. Como se sabe, a propaganda
bolsonarista não é dada a nuances e exibirá a evidente hipocrisia como pecado
de toda a oposição. E com alguma razão, pois, embora claramente divididos
quanto à oportunidade dessa convocação, todos os partidos da esquerda a
assinaram, mirando duvidosos bônus políticos. Já o “centro”, silente, em geral,
diante da aventura, dividirá apenas os ônus.
O agressivo ministro das comunicações segue o figurino do presidente e ambos farão, com as imagens das manifestações de hoje, o que têm feito com os presentes recebidos, diariamente, do performático triunvirato da CPI da pandemia, que, estando longe da esquerda das ações diretas, substitui a oposição política pela demagogia direta. O próximo presente - avisa Demétrio Magnolli, em “Sob o feitiço das redes”, FSP, 29.05.21 - será a mensuração “científica” das mortes que poderiam ter sido evitadas, anunciada pelo relator da CPI, num amadorismo surpreendente, tratando-se de quem se trata.
Por essas e outras não surpreende tanto o
efeito que, surpreso, o professor Pablo Ortellado comentou, também hoje, em O
Globo (“Governo vence disputa nas redes”, 29.05.21). É impressionante como parte da oposição fornece
matéria-prima preciosa para a usina de factóides de um governo atolado em lama
e crimes. Tão atolado que nem assim consegue deter a rejeição crescente entre
os antes indiferentes, mas usa bem os regalos para conservar o seu patamar básico
de apoio social. Para isso nada como ter adversários açodados, sempre assíduos
em comprar provocações. Graças a eles o governo bolsonarista já logrou inserir,
ao menos como dúvida, na pauta das redes e da imprensa, a sua equiparação aos
governadores na condição de potenciais investigados na CPI e agora caminha para
dividir com a oposição a pecha de desafiador do vírus nas ruas. Bolsonaro nem
precisa vencer esse debate (o que ademais não parece razoavelmente possível),
precisa apenas nivelá-lo por baixo, como tem conseguido.
Encerrarei esta coluna tentando mostrar o
outro lado dessa lua que aparece tão minguante, aos olhos de uma sociedade
traumatizada. Diante do pessimismo predominante, correrei o risco de parecer
irrealista, ou até poliânico. Por isso, precisarei fazer parêntesis relativamente
longo para, na sequência, inserir na discussão uma visão opcional sobre o
possível, baseada no acordo de Mario Lago com o tempo. Como já dito, coisa de
quem pensa a política como o território, por excelência, da representação.
Como sabemos, a mediocridade e a
violência (por enquanto verbal) do embate político atual dura desde 2014 e não
apenas se intensificou de modo inédito com o mais recente protagonismo da
extrema-direita e de Bolsonaro, em particular. Há na cena de agora mais do que
isso, uma mudança de qualidade (no mau sentido) porque o confronto político
transbordou do jogo interativo, ou reativo, entre atores e passou a desafiar,
abertamente, os limites da institucionalidade, civil e militar. Por essa razão,
a percepção pública da crise começa a imputar à agitação bolsonarista um
caráter de permanência institucional. Fala-se de derrotar Bolsonaro como se se tratasse
de derrubar uma ditadura. Essa percepção é possível quando a linguagem
institucional desaparece da cena e a desqualificação e o xingamento dominam o
léxico da política, assim como a perseguição à verdade e à mentira (temas
policiais e judiciais), impõe-se, perversamente, como regra antipolítica, à
gramática dos procedimentos. O Senado
Federal está sendo um palco exemplar desse drama e é espantoso como, em meio à
gritaria, não se ouve mais, um mês depois da CPI, a voz prudente e institucional
do seu presidente.
A sensação difusa é, por absurdo, que o
bolsonarismo é uma instituição, ainda que espúria, embora ele seja, de fato, um
movimento extremista, cada vez mais subversivo. A opinião pública, quando vê
que esse movimento e seu chefe são capazes de encostar na parede comandantes
das Forças Armadas diminui sua confiança na democracia. Enquanto o grande
empresariado vacila, parte minoritária da opinião pública que tem alguma voz adere
à onda autocrática e vira massa de manobra da estratégia golpista (casos
evidentes, por exemplo, de associações de policiais, caminhoneiros e comerciantes),
enquanto a maior parte da sociedade civil, imprensa incluída, passa a colocar em
segundo plano preferências, escolhas e
valores, e agarra-se ao que parece ser (e efetivamente pode ser) a salvação: um
político com recall, capaz de vencer Bolsonaro na arena plebiscitária onde se
escolhe o presidente.
A lógica fatalista tem, portanto, razão
de ser e não pretendo desqualificá-la, não só porque tem base realista, como
porque a alternativa pragmática que essa lógica enxerga possui legitimidade
democrática. O que tenho feito em vários sábados, e farei também neste, com
ênfase especial, é argumentar que o fatalismo também se baseia em impressões amparadas
em evidências não suficientes.
O que explica raciocínios tão conclusivos
num contexto de tanta volatilidade em que a resiliência da popularidade de
Bolsonaro é a única incerteza com aparência de certa e embora seja também essa
a aparência do aumento da sua rejeição? Difícil entender qualquer fatalismo
quando se pensa que há um mês e meio Rodrigo Pacheco era a voz do Senado, que
há dois meses e meio Lula era carta fora do baralho, que há três meses o
episódio Daniel Silveira sinalizava um protagonismo do STF e que há quatro
meses Rodrigo Maia era símbolo de política prudencial. Vejo os doze meses que
nos separam das convenções como longuíssimo prazo e os dezesseis que nos
separam da eleição como uma eternidade.
O que leva pessoas a afirmarem que
Bolsonaro “já está no segundo turno” é, certamente, a evidente resiliência da
sua base de apoio revelada nas pesquisas, associada aos efeitos persuasivos de
uma intensa campanha pelo voto “útil” já no primeiro turno, feita pelo PT e
pela militância lulista. Já o ruído que a pequena parte militante da base
bolsonarista costuma fazer produz uma sensação de que ela não apenas é
relevante - e é - mas também uma possível maioria. As evidências das mesmas
fontes (pesquisas) são todas ao contrário disso, posto que a rejeição cresce de
modo sustentado (pesquisa mais recente a coloca às portas dos 60%) e aponta uma
barreira que se erguerá, no segundo turno, contra a reeleição do presidente.
Isso pode mudar? Em tese sim, tudo pode
mudar, mas por que a afirmação só vale no sentido a favor de Bolsonaro? A
rejeição pode ser transitória, mas o apoio não?
Vamos a Lula. Também pelas pesquisas, é forte
a evidência de que “já está no segundo turno” e, também, de que “é o cara” mais
capaz (seus simpatizantes dizem que o único, mas aí já não se argumenta em
terra firme) de derrotar Bolsonaro. Os números exuberantes de intenções de voto
que Lula ostenta seduzem qualquer democrata interessado em ver o capitão, no
mínimo, fora do palácio. Mas não são evidência bastante para justificar que
pessoas em princípio afastadas da área de influência do PT já se apressem a
dizer que “o jeito” é ir de Lula desde o primeiro turno. Isso ocorre, ao que
parece, pelo mesmo motivo dos prognósticos “intuitivos” sobre Bolsonaro. A
polarização cria um movimento endógeno à sua própria lógica, que a reafirma
como sensação de que é um desígnio dos fatos.
Outra evidência em favor da sensação de
irreversibilidade da situação de Lula é não haver movimento na esquerda que
possa desafiá-lo. Ciro Gomes perde a cada dia substância nesse campo e sua
escolha parece ser entrar no jogo ainda aberto na centro-direita. Agora acaba
de pegar a contramão da polêmica provocada pelo bolsonarismo em torno do voto
impresso. Destoando de toda a oposição, legitima a pauta, alegando querer tomá-la
de Bolsonaro. Parece querer, na verdade, os eleitores de Bolsonaro, postando-se
como “vanguarda do atraso”, para, como já cogitou, bater-se com Lula no segundo
turno. Plus para Lula no primeiro, se pensarmos no destino dos votos de
centro-esquerda para Ciro em 2018.
Tudo isso é aporte razoável aos
prognósticos, animados ou fatalistas, sobre o favoritismo de Lula. Tanto aporte
que o foco das atenções passa longe da concomitante rejeição ao petista, fator
pouco relevante, hoje, diante da maior e crescente rejeição a Bolsonaro.
Acontece que essa pouca relevância aumentará, como problema, se a rejeição de
Bolsonaro recuar. E será um problema ainda mais sério para Lula se aumentar o
bastante para que a centro-direita abandone o presidente e se agregue em torno
de uma candidatura mais leve. Em resumo,
Lula é “o cara” enquanto a situação de Bolsonaro não mudar. Essa situação
mudando, para melhor ou para pior, o que hoje é solução poderá passar a ser uma
questão em aberto.
Se, diante da consolidação de um consenso oposicionista de que é "Lula ou
ninguém" e de um consenso governista de que é "Bolsonaro ou
ninguém", pesquisas passarem a sinalizar que a reeleição, hoje improvável,
voltou a ser provável, aí sim, pode ser tarde demais para fabricar uma
alternativa, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista legal
(prazos para filiações, convenções, etc...).
Após o parêntesis penso ter, ao menos,
moderado as convicções fatalistas e fico mais à vontade para propor uma reflexão
sobre o seguinte: nem só de lógicas vertiginosas tem vivido a política
brasileira. Há movimentos de atores que, tendo o jogo da representação política
como foco agregador, negociam prudentemente com o tempo sem incorrerem em performances
populistas, unilateralmente centradas em suas identidades individuais. Nesse
sentido, já comentei, no sábado passado, a sinalização positiva oferecida pelo
encontro de Lula com Fernando Henrique Cardoso, na casa ecumênica de Nelson
Jobim, um quadro anfíbio da política, detentor de experiência nos três Poderes
da República. Agora trago - como exemplo, até esse momento, ainda mais prático
do que aquele - o movimento de entrada no PSB de políticos oriundos de outros
partidos da esquerda e centro-esquerda, a saber, Flavio Dino, Manuella D’ávila
e Orlando Silva (PCdoB), Marcelo Freixo (PSOL) e, provavelmente, Tábata Amaral
(ex-PDT).
Essa esperançosa aterrissagem, em um
mesmo partido, com longa história, de políticos exemplares de uma esquerda que
dialoga com aliados e adversários e se preocupa com uma agenda positiva para o
país, certamente também tem um componente pragmático. A convergência é efeito
antecipado da proibição de coligações em eleições para deputado federal, o que
dificulta a que vários partidos formem bancadas suficientemente numerosas para
atenderem à nova cláusula de barreira.
Do ponto de vista da eleição presidencial,
esse movimento importante não altera (a princípio até reforça) a tendência de a
esquerda convergir para Lula. No PSB, o grupo do prefeito de Recife está com
Lula, outras direções estaduais tendem ao mesmo caminho, embora outras não. Se
alguma indefinição há, a chegada desses quadros parece fazer a balança pender
para o apoio ao petista, até mesmo Tábata, cujo perfil indica preferência por
soluções mais ao centro. Enquanto Bolsonaro estiver na raia o perigo une e não deve
haver maiores divergências entre os neófitos e a banda mais à esquerda dos
antigos.
Agora, noutro cenário, com Bolsonaro
derretido, arredado e havendo uma candidatura de centro agregadora, quem tiver olho
estratégico vai querer, ao menos, rediscutir o apoio imediato a Lula. Isso
porque a construção de um projeto plural de longo prazo, que forme e articule
uma esquerda assumidamente reformista e social-democrata, encontraria ambiente
mais propício e saudável para prosperar ao lado de um governo de centro
moderado - ou mesmo no âmbito de uma futura oposição a Lula - do que compartilhando
um governo pressionado pelo retrovisor, por uma fênix petista. Explico: a vitória
de Lula, ou de qualquer oposicionista, derrotará Bolsonaro, mas não abolirá o
bolsonarismo. Com Lula no governo, esse movimento tende a converter-se numa força
de oposição e unificar a direita, civil e militar, pela extremidade. A
instabilidade tende a ser o traço mais marcante do ambiente político nos anos
seguintes e aí é difícil pensar em "luxos" como projetos de país,
renovação de partidos, de lideranças, etc. Impossível vislumbrar agora o que
sucederá. Mas se cedermos a uma
tentativa de projeção concluiremos que o incerto mais provável é, na futura
oposição, todos os caminhos levarem de volta ao mito e, na futura situação, o
governo virar trincheira e não patamar de avanço.
Nas condições objetivas do jogo, não há
sentido em ver um quadro da esquerda disputando eleições contra Lula, em 2022. O
mesmo não se pode dizer da hipótese de uma ampla aliança ao centro voltar a se
colocar na pauta, em razão de variáveis que a esquerda, nem toda a oposição
reunida, pode controlar.
Por exemplo, a oposição não pode saber onde
vai parar a atual disputa entre o PSD e o DEM pela posição de partido
propositor da alternativa do conservadorismo pragmático e liberal a Bolsonaro,
nem das possibilidades dessa disputa acabar em acordo. Se separados, aqueles
dois partidos não ameaçarão os dois atuais protagonistas. Juntos poderão
imantar o centro onde PSDB e MDB dormem e, a depender do jogo de cintura do
candidato, baterem à porta da centro-esquerda, ou serem visitados por ela.
Igualmente, a oposição não pode saber
qual será o quadro pós-vacinação no Brasil, nem se, ou em qual momento,
Bolsonaro ensaiará sua marcha aos nossos capitólios. Os sinais visíveis (os
únicos que podemos considerar) são de que ela poderá ocorrer porque será a opção
de Bolsonaro se sua rejeição seguir aumentando. Terá êxito? Não sabemos ao
certo. A contagem regressiva já começou, mas se houver resistência unitária, é
muito difícil que ele consiga. Essa confiança não pode, no entanto, levar à
imprudência de dar como definitivo o quadro pré-eleitoral, antes de realizado,
ou não, esse encontro com uma provável investida mais radical da extrema
direita. Pode se impor uma solução mais ampla e unitária do que a volta do PT.
Ela não cairá do céu por milagre. Precisa estar no radar.
Um amplo movimento cívico em defesa das
instituições e pela garantia das eleições, aí sim, pode mudar inteiramente o
jogo e até levar Lula a trocar a posição de candidato pela de estadista, como
imaginou recentemente o professor Werneck Vianna. Ou, falando com a linguagem
da pequena política, uma situação de união nacional que poderia deixar o PT na
posição de se integrar ou marchar sozinho, ou com o PSOL Conjecturas à parte, Lula
terá sempre papel relevante. Depois de tudo o que o envolveu, isso é uma medida
exata da emergência a que chegamos.
Nesse processo ainda sob nuvens densas, uma
eventual alternativa a Lula, negociada com ele, não necessariamente redundaria
numa candidatura de esquerda. Aliás, Lula e o PT devem preferir que não redunde.
Quem seria esse sujeito oculto? Não sabemos, mas é possível imaginar, se o
exercício for compartilhado por partidos e grupos que estão no jogo
pré-eleitoral em curso, mas informados pela boa lição de que em conjunturas
críticas e voláteis não se deve atuar sem plano B.
*Cientista político
e professor da UFBa
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