domingo, 30 de maio de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Nada mudou

Folha de S. Paulo

Enquanto CPI expõe desmandos na gestão da pandemia, Bolsonaro comete novos

Em que pese a falta de preparo e planejamento, a CPI da Covid vem conseguindo reunir evidências à mancheia sobre os desmandos e omissões do governo Jair Bolsonaro durante a pandemia.

No depoimento mais recente à comissão, o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, trouxe detalhes que deram substância à desídia presidencial concernente à aquisição da vacina Coronavac.

Não houvesse a administração federal recusado em outubro de 2020 uma oferta de 100 milhões de doses do imunizante, num resultado direto de declarações do mandatário, o Ministério da Saúde teria recebido 49 milhões de doses a mais até o fim de maio.

Naquele momento, contudo, o presidente estava mais preocupado em imprecar publicamente contra o imunizante e promover seus curandeirismos —fruto, ao que parece, dos conselhos de um estapafúrdio “ministério paralelo” que operava à margem da Saúde.

Já chegaram à comissão documentos que indicam ao menos 24 reuniões do grupo, composto por filhos de Bolsonaro, negacionistas como o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) e médicos defensores da cloroquina, entre outros.

A incúria não ficou restrita ao Planalto. Só em abril, mais de um ano após a pandemia ter sido decretada pela Organização Mundial da Saúde, o Itamaraty instituiu um grupo de trabalho para intensificar os esforços em prol da obtenção de vacinas, testes e insumos —quase todos, como se sabe, produzidos fora do país.

O mesmo pode ser dito do Ministério da Saúde, que acaba de lançar um novo plano de testagem em massa da população, providência na qual fracassou fragorosamente até agora, não obstante seu papel crucial na contenção da doença.

Tais tentativas canhestras e tardias de correção de rumo, contudo, passam ao largo de Bolsonaro. O presidente, fica claro, nada aprendeu, nada mudou.

Na quinta (27), em seu destampatório semanal pela internet, o mandatário voltou a promover a cloroquina, além de atacar membros da CPI com as baixezas de praxe.

No mesmo dia, o governo, ignorando os sinais de novo recrudescimento da infecção, ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal contra as medidas de distanciamento adotadas em Pernambuco, Paraná e Rio Grande do Norte.

Sendo praticamente nulas suas chances de prosperar, dadas as decisões pregressas da corte, a iniciativa serve, na verdade, ao principal propósito de Bolsonaro durante a pandemia —alimentar o radicalismo de suas bases, açular a população contra governadores e prefeitos e promover o tumulto sanitário que já legou ao país a ignomínia de 460 mil mortes.

 

Métrica do emprego

Folha de S. Paulo

Pesquisas mostram discrepâncias na volta das vagas formais e informais

Desde que começou a ser superada a recessão causada pela pandemia, o mercado de trabalho apresenta uma dicotomia entre a criação de empregos com carteira, aparentemente mais robusta, e a de postos informais. Pesquisas diferentes também divergem sobre quantos postos formais foram abertos.

Em parte, as diferenças decorrem de pesquisas distintas, mas mesmo assim causam espécie. Enquanto o Caged coleta os dados das empresas referentes as novas vagas celetistas, a pesquisa domiciliar do IBGE (a Pnad Contínua) entrevista uma amostra de famílias, medindo todos os tipos de ocupação.

Segundo o Caged, após perda de 1,15 milhão de empregos formais durante a crise (entre março e junho de 2020), houve recuperação de 2,31 milhões desde então. Ou seja, o estoque de empregos nessa medição está hoje 1,2 milhão (3%) acima do pré-pandemia.

Já a Pnad mostra quadro pior. No auge da recessão teria havido fechamento de 3,85 milhões de vagas formais, 11,6% do total, com recuperação posterior insignificante.

Nas categorias sem carteira a perda foi maior, de 7,2 milhões de vagas, ou 23,8% de todos os empregos nessa categoria, mas a retomada recriou 3 milhões desses empregos, concentrada nos trabalhadores por conta própria.

Na prática, a Pnad mostra estagnação de partes do mercado de trabalho e elevado nível de desalento. O desemprego ainda atinge 14,8 milhões de pessoas, e a pesquisa evidencia a pior situação da mão de obra menos escolarizada.

A verdade provavelmente está no meio das duas leituras. Há uma retomada econômica em curso, que parece ganhar velocidade. O Produto Interno Bruto deve crescer acima de 4% neste ano e impulsionar a criação de empregos.

As diferenças também decorrem do padrão dessa recuperação, mais ancorado nos setores formalizados, como a indústria. Outros setores que tiveram aumento de demanda, como construção civil, também mostram dinamismo.

De outro lado, comércio e serviços ainda patinam, e são esses os segmentos com maior prevalência de empregos menos qualificados.

Não é possível descartar um convívio, ao menos por algum tempo, de atividade em crescimento com letargia no mercado de trabalho, sobretudo para a baixa renda.

Tem-se aí um desafio de política pública, em que é preciso conceber mecanismos de proteção social condizentes com essa realidade.

 A inflação sem gravata

O Estado de S. Paulo

Para dezenas de milhões de famílias, inflação significa maior dificuldade para comer, morar, manter crianças na escola e pagar contas de água, luz e gás. No mercado financeiro, a alta de preços é tratada normalmente como um indicador, entre vários outros, da tendência dos juros e da rentabilidade de ações e de outros investimentos. Por isso, houve recuo dos juros futuros depois da divulgação, na terça-feira passada, da prévia da inflação de maio. Com alta de 0,44%, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15) oscilou bem menos que no mês anterior, quando havia subido 0,60%. Essa mudança foi saudada, segundo noticiário da Agência Estado, como uma “trégua”. Seria muito estranho, no entanto, falar em trégua para quem tivesse de comprar comida, naquele dia, ou liquidar a conta de luz. Fora do tal “mercado”, a realidade prosaica é bem menos confortável.

Para começar, o recuo de 0,60% para 0,44% ocorreu na média da variação de preços. Há detalhes muito mais feios que a média e muito mais incômodos no dia a dia das pessoas “comuns”. Com alta de 0,48%, o custo da alimentação cresceu mais que no mês anterior. O gás de botijão encareceu 1,45%, menos que em abril (2,49%), mas esse preço aumentou pelo 12.° mês consecutivo. Mas é outro o ponto mais importante, aparentemente esquecido por quem falou em trégua. Os novos aumentos, mesmo os mais limitados, ocorreram sobre preços já muito elevados. Para as famílias, a situação já era ruim e continuou piorando. Nos 12 meses até maio, o IPCA-15 subiu 7,27%. Essa foi a maior variação desse tipo desde aquela registrada nos 12 meses terminados em novembro de 2016, de 7,64%.

Não há como confundir aumento menor e diminuição de preços. Nos 12 meses até maio, o custo da alimentação, medido pelos critérios do IPCA-15, subiu 12,19%. Mas isso também é um número médio. O grupo cereais, leguminosas e oleaginosas, no qual se incluem feijão e arroz, encareceu 40,82% nesse período. Os preços das carnes subiram 35,68%. Leite e derivados passaram a custar 11,32% mais. No caso do gás, a alta chegou a 21,09%.

Esses níveis foram alcançados porque os novos aumentos, grandes ou pequenos, ocorreram sobre bases muito elevadas. Ninguém paga, no supermercado, apenas a variação de preço registrada nos últimos 7 ou 30 dias. Paga o preço anterior mais o novo aumento – ou, na melhor hipótese, o preço anterior menos a variação negativa. Esses detalhes talvez sejam menosprezados quando se cuida do dia a dia dos ativos financeiros, mas sua importância é vital para as famílias.

Nem a fantasia da trégua, no entanto, durou uma semana. O IPCA-15, apurado entre 14 de abril e 13 de maio, foi divulgado no dia 25. Três dias depois, a Fundação Getulio Vargas publicou o Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M), pesquisado entre 21 de abril e 20 de maio. O indicador subiu 4,10%, contra 1,51% na apuração anterior, e acumulou alta de 14,39% no ano e de 37,04% em 12 meses.

O aumento foi puxado pelos preços no atacado, com alta de 5,23% no mês e 50,21% em 12 meses. Esse componente tem peso de 60% na formação do IGP-M. No mês, as matérias-primas brutas encareceram 10,15%, refletindo principalmente as cotações internacionais. Os bons preços externos de mercadorias agrícolas e minerais têm assegurado uma robusta receita comercial ao Brasil, mas têm afetado perigosamente os preços internos. Esse efeito tem resultado também da relação entre o dólar e o real, uma das moedas mais desvalorizadas do mundo. Essa desvalorização tem refletido a insegurança dos investidores quanto à evolução das contas públicas e diante das prioridades presidenciais.

Alta de preços no atacado acaba afetando os preços no varejo, embora o aperto das famílias dificulte o repasse. Os preços ao consumidor, segundo componente mais importante do IGP-M, subiram 0,61% na última apuração, bem mais que na anterior (0,44%). Em 12 meses, a alta chegou a 7,36%, número parecido com o do IPCA-15. Fora do mercado financeiro existe a inflação sem gravata. Esta é muito mais feia.

 A inconstitucionalidade como tática

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro tenta fustigar o Supremo por meio de ações acintosamente inconstitucionais

Não há nada de anormal em que, vez por outra, haja alguma tensão nas relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário. A autonomia de cada Poder não é absoluta, cabendo aos outros promover ou restabelecer o equilíbrio. Fundamento da separação dos Poderes, essa dinâmica de freios e contrapesos é o cerne do sistema proposto por Montesquieu.

O presidente Jair Bolsonaro tem, no entanto, se valido desse sistema de controle para uma nefasta manobra. O objetivo tem sido fustigar o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de atos acintosamente inconstitucionais.

A manobra se dá da seguinte forma. O governo Bolsonaro propõe ações judiciais ou edita atos que, desde o início, já se sabe que o Supremo rejeitará, em razão de manifesta inconstitucionalidade. O objetivo, no entanto, não é obter o que foi pedido. O que se quer é a decisão negativa do Judiciário.

Depois, esse conjunto de decisões judiciais contrárias ao governo Bolsonaro – afinal, não se trata apenas de uma ação manifestamente inconstitucional, mas de uma série de medidas contrárias à Constituição – é usado como desculpa para a incompetência do próprio governo. A mensagem de irresponsabilidade é simples: o presidente Jair Bolsonaro tenta fazer o bem para o País, mas o Supremo não deixa.

Exemplo dessa tática é a mais nova manobra do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia. A Advocacia-Geral da União (AGU) acionou o Supremo para questionar as medidas de restrição dos governadores de Pernambuco, Paraná e Rio Grande do Norte.

O tema é pacífico. A Constituição prevê a competência compartilhada da União, Estados e municípios em relação à saúde pública.

Além disso, o Supremo, no primeiro semestre de 2020, já reconheceu que governadores e prefeitos podem decretar restrições para conter a pandemia. Ou seja, não há nenhuma dúvida sobre qual será a decisão do STF em relação à nova ação da AGU, mas mesmo assim – ou melhor, precisamente por isso – o governo Bolsonaro acionou o Supremo.

Outro ato para fustigar o Supremo diz respeito ao decreto, anunciado pelo Executivo federal, sobre as redes sociais. Sob o pretexto de regulamentar o Marco Civil da Internet, o presidente Jair Bolsonaro deseja proibir que as redes sociais excluam publicações ou suspendam perfis que contrariem as normas dessas plataformas.

As redes sociais não podem ser passivas no combate à desinformação. É crescente a percepção de que – para a saúde pública, para o livre debate de ideias e para a própria democracia – as redes sociais não podem ser um espaço sem lei.

O presidente Jair Bolsonaro promete, no entanto, fazer o exato oposto, impedindo que as redes sociais zelem pelos respectivos ambientes virtuais e pela validade de suas regras. É óbvio que um decreto com tal conteúdo não tem como prosperar no Supremo, por manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade. Mas isto é o que Jair Bolsonaro deseja: mais um pretexto para dizer a seus apoiadores que ele defendeu – e o Supremo negou – a liberdade de expressão.

Uma terceira medida sem a menor viabilidade, mas que por isso mesmo Jair Bolsonaro vem dedicando cada vez mais energia, é o voto impresso. O STF já declarou que é inconstitucional, pelos riscos de manipulação e pela desproporção do custo econômico, a obrigatoriedade da impressão de registros de votos depositados de forma eletrônica na urna. Na decisão, o Supremo lembrou que não há nenhum indício de fraude nas urnas eletrônicas. A fraude existia antes, quando se utilizava cédula de papel nas eleições.

A inviabilidade do voto impresso pouco importa, no entanto, a Jair Bolsonaro. Seu objetivo é disseminar a desconfiança no sistema eleitoral, para que possa apresentar sua eventual derrota eleitoral como resultado de um complô contra ele – um complô com a participação do Supremo.

O uso do aparato público – em última análise do dinheiro público – para produzir continuamente inconstitucionalidades não é apenas uma afronta ao Supremo. É um deboche com a Constituição e um vil insulto à Nação.

 Os tormentos da Mata Atlântica

O Estado de S. Paulo

A Mata Atlântica é o bioma mais devastado do Brasil. Hoje restam apenas 12,4% de sua cobertura original. Apesar disso, a devastação persiste. Segundo o Atlas da Mata Atlântica realizado pelo Inpe e a SOS Mata Atlântica, entre 2019 e 2020 a degradação aumentou em 10 dos 17 Estados que registram a presença do bioma.

Hoje os índices são significativamente melhores do que no fim do século 20. Entre 1985 e 1995 devastavam-se, em média, mais de 103 mil hectares por ano. Entre 2019 e 2020 foram 13 mil hectares. Mas foi um pequeno avanço considerando-se que entre 2017 e 2018 chegou-se a quase 11 mil hectares, o menor nível histórico.

Em termos de escala, as áreas de grandes desmatamentos servem à expansão da agricultura. Mais de 90% estão em apenas cinco Estados, com Minas Gerais em primeiro lugar (4,7 mil hectares), seguida por Bahia (3,2 mil), Paraná (2,1 mil), Santa Catarina (887) e Mato Grosso do Sul (851).

Em termos de volume, o desflorestamento em Estados como São Paulo e Espírito Santo foi pequeno, de 218 e 75 hectares, respectivamente. Mas o aumento em relação ao ano anterior foi grande: mais de 400% nos dois casos. A aceleração é preocupante, primeiro porque são Estados que estavam próximos do desmatamento zero, depois porque nesses casos o desmatamento ocorre em função de exploração imobiliária em volta das cidades, muitas vezes nas áreas de mananciais, trazendo grandes riscos para o abastecimento hídrico.

É preciso ter em mente que a devastação e a preservação ambiental na Mata Atlântica têm características distintas em relação, por exemplo, à Amazônia. A escala é expressivamente menor. Mas a Mata Atlântica está presente em 17 Estados, é o bioma onde vivem mais de 70% dos brasileiros e concentra 70% do PIB nacional. Dela dependem serviços essenciais como abastecimento de água, agricultura, pesca, energia elétrica e turismo.

Mesmo com uma fração marginal de sua cobertura primitiva, a Mata Atlântica abriga a maior diversidade de árvores por hectare do mundo: 20 mil espécies de plantas, além de 1.300 espécies de animais. Diferentemente da Amazônia, a mera redução do desmatamento não é suficiente para conservar essas características. É preciso visar, a curto prazo, ao desmatamento zero e à restauração em escala.

Um estudo publicado na revista Nature estima que a Mata faz parte de um conjunto de ecossistemas cuja recuperação de 15% da área desmatada evitaria 60% da extinção de espécies ameaçadas no planeta e absorveria 30% do carbono acumulado desde a Revolução Industrial.

Hoje, mais de 90% do território remanescente da Mata Atlântica é composto por espaços fragmentados, com menos de 100 hectares, o que prejudica a preservação de sua biodiversidade. Segundo o diretor do Instituto Internacional para Sustentabilidade, Bernardo Strassburg, um dos autores do estudo da Nature, o mero replantio pulverizado é pouco eficaz. Intervenções que criem corredores verdes conectando as áreas remanescentes podem ter um impacto regenerativo até oito vezes maior.

Diante dessas necessidades, os ambientalistas estão apreensivos com a atmosfera de descaso que impera em Brasília, não apenas por parte do presidente Jair Bolsonaro, de quem nunca se esperou nada a não ser hostilidade à causa ambiental, mas do próprio Congresso. Há pouco, a Câmara dos Deputados encaminhou ao Senado um projeto de lei dispensando o licenciamento ambiental para uma série de atividades agropecuárias, além de projetos de infraestrutura e construção civil.

Muitos governadores dos Estados cobertos pela Mata Atlântica têm manifestado o desejo de mostrar protagonismo em fóruns internacionais como a Conferência do Clima, a ser realizada em Glasgow. Nas condições atuais, precisarão redobrar seus esforços. Não se trata apenas de reforçar a fiscalização contra práticas predatórias locais, mas de defender os próprios instrumentos de fiscalização de políticas predatórias de Brasília. Além disso, os governos estaduais precisam propor metas ambiciosas de restauração da Mata Atlântica.

O que destrói a economia é o medo do vírus

O Globo

Num de seus improvisos diante da claque do Palácio da Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro se saiu outro dia com a seguinte tirada: “Tem alguns idiotas que até hoje ficam em casa”. Era mais uma crítica ao distanciamento social. Na mente de Bolsonaro, a economia sofre apenas por causa das medidas de restrição decretadas por prefeitos e governadores para conter a pandemia.

Pela segunda vez, ele entrou no Supremo contra três governos que as adotaram: Paraná, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Tomou cuidado para que a ação fosse subscrita pela Advocacia-Geral da União (AGU), que alega agir em nome da liberdade. “A proteção à saúde deve considerar os devastadores efeitos que medidas extremas e prolongadas trazem”, afirma. É um raciocínio que revela enorme ignorância sobre a dinâmica da pandemia.

Para começar, jamais houve no Brasil medida extrema, como lockdown ou quarentena para valer. Ao contrário, o isolamento tem caído mês a mês. O Datafolha constatou que está no nível mais baixo desde antes da pandemia. Apenas 28% dizem sair de casa só quando inevitável (ante 54% em abril de 2020), 2% de jeito nenhum (eram 18%). São esses 30%, pelo visto, os “idiotas” a que Bolsonaro se referia.

O raciocínio torto de Bolsonaro mistura duas questões. A primeira é até que ponto restringir o movimento é eficaz contra o vírus. A segunda é o impacto econômico dessas medidas. A resposta à primeira questão é trivial. Sobram evidências científicas comprovando a eficácia do distanciamento no combate ao contágio. Eis algumas:

1) Estudo do Imperial College londrino de junho de 2020 avaliou medidas de restrição em 11 países europeus. Concluiu que tiveram “efeito substancial” na redução da taxa de contágio e estimou em 3,1 milhões as vidas salvas;

2) Estudo da mesma época na revista científica Nature comparou a evolução da pandemia em 1.700 localidades de seis países. Concluiu que lockdowns impediram ou retardaram 530 milhões de infecções;

3) Estudo francês na Journal of General Internal Medicine analisou nove países. Conclusão: os dois únicos sem lockdown ou com medidas heterogêneas de distanciamento (Suécia e Estados Unidos) registraram taxas mais altas de contágio por mais tempo;

4) Análise de 202 países na Applied Health Economics and Health Policy concluiu que “lockdowns são eficazes em reduzir o número de novos casos nos países em que são implementados, na comparação com aqueles em que não”;

5) Pesquisa publicada na Nature Human Behaviour em novembro comparou medidas distintas contra o contágio. Entre as seis mais eficazes, estão lockdowns nacionais e restrições individuais ao movimento;

6) Estudo de brasileiros e americanos publicado em abril na revista Science investigou a pandemia no Brasil. Concluiu que “à medida que estados e municípios impunham e relaxavam medidas de restrição, a mobilidade facilitava a circulação do vírus”. O resultado foi confirmado pelo Instituto de Estudos para Políticas em Saúde, que constatou aceleração da mortalidade nos estados e municípios onde o distanciamento social foi menor.

A segunda questão, sobre o efeito econômico do distanciamento, é ao mesmo tempo mais insidiosa e mais complexa. Empresários e políticos são seduzidos pela conversa de que relaxar medidas de restrição, como quer Bolsonaro, trará automaticamente uma retomada robusta. Alguns se mostram dispostos até a aceitar mais mortes para isso (um argumento, em si, imoral).

Em prol dessa visão, os indicadores demonstram recuperação da atividade nos primeiros meses deste ano, coincidente com a queda no isolamento — e a alta na mortalidade. Mas tal análise também não resiste a uma investigação séria. O que tem mantido negócios parados é o receio da população de pegar uma doença mortífera, não qualquer decreto. A recuperação deve ser atribuída mais à esperança trazida pela vacinação, que incentiva o consumo, do que ao relaxamento nas restrições. Há indícios convincentes de que a dinâmica econômica segue a flutuação na confiança, não nas regras impostas.

Logo no início da pandemia, os economistas Austan Goolsbee e Chad Syverson compararam cidades vizinhas nos estados americanos de Iowa (onde não houve decreto de lockdown) e Illinois (onde houve). A atividade caiu igualmente dois dos lados da fronteira estadual. Outra evidência: a Suécia, citada como exemplo pela repulsa às medidas de restrição, sofreu impacto econômico comparável a Noruega, Dinamarca e Finlândia, onde quarentenas foram rigorosas. Estudo na revista britânica The Lancet constatou que a economia sofreu menos em 2020 naqueles países da OCDE que implantaram medidas rígidas para eliminar o vírus.

Uma pesquisa do setor privado em vários estados americanos concluiu que nem decretos de lockdown nem a reabertura resultaram em diferenças significativas na atividade. A população começou a deixar de frequentar restaurantes ou eventos bem antes das medidas de restrição, simplesmente por sentir medo do vírus. Pelo mesmo motivo, a reabertura não significou recuperação imediata. O consumo só voltou para valer com o avanço da vacinação e a decorrente sensação de tranquilidade. Como escreveu o jornalista e economista Noah Smith, “é o medo do vírus o grande destruidor da economia”.

Numa análise de 60 países, economistas do FMI concluíram que “o relaxamento deve ser implementado de modo a minimizar os riscos para a saúde, apenas quando as novas infecções estão em queda, com políticas amplas de testagem e rastreamento”. Tradução: enquanto as taxas de infecção e mortes forem altas, o medo estará presente, e economia sofrerá.

Tudo aquilo que funcionar para reduzi-las deve, portanto, ser feito: restrições e distanciamento (com lockdowns localizados se necessário), testes em massa e rastreamento e, sobretudo, acelerar a vacinação. Do contrário, muita gente continuará em casa. Não porque sejam idiotas, mas simplesmente porque são humanos — e têm medo de morrer.

 

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