Revista Veja
A agenda regressiva que o presidente da
Câmara chama de reforma política
O Brasil enfrenta problemas graves para
todo tipo de (des)gosto — sanitário, político, econômico, social e energético
—, que requerem a mobilização de diversos setores. Uns com maior êxito e
presença, outros com menor eficácia, menos visibilidade ou poder de influência,
mas cada qual fazendo a sua parte na medida das respectivas possibilidades.
O Supremo Tribunal Federal num empenho
diuturno para barrar ofensivas antidemocráticas, o Ministério Público e a
Polícia Federal em luta contra interferências “de cima”, organizações sociais
mobilizando-se para minorar a situação de brasileiros vulneráveis, governadores
e prefeitos envolvidos numa saudável corrida em prol da vacinação, o Senado
montando na CPI o quebra-cabeça do desmazelo governamental na gestão da
pandemia e a oposição mergulhada nas articulações para enfrentar Jair Bolsonaro
em 2022.
Diante disso, a Câmara dos Deputados faz o quê? Discute mudanças nas regras político-eleitorais, entre as quais a instituição do voto impresso para conferência do resultado obtido nas urnas eletrônicas. E esse é apenas um entre os vários itens de uma agenda regressiva que o presidente da Câmara, Arthur Lira — patrocinador maior da iniciativa —, chama de reforma política.
Na pauta do atraso estão também restrições
à atuação da Justiça Eleitoral, o afrouxamento das regras de inelegibilidade
tornadas mais severas na Lei da Ficha Limpa, a volta das doações empresariais,
a revogação do fim das coligações proporcionais, a redução das exigências para
o desempenho eleitoral dos partidos para acesso ao fundo público de
financiamento e horário no rádio e na televisão, além da adoção de um sistema
chamado “distritão”, que, segundo especialistas, fortalece as cúpulas, mas
enfraquece a estrutura das legendas.
Até por representarem um retrocesso em
relação a alguns avanços obtidos ao longo dos últimos anos, várias dessas
medidas em discussão já foram rejeitadas anteriormente pelo Supremo Tribunal
Federal (voto impresso, em 2013 e 2020, e financiamento empresarial, em 2015) e
pelo próprio Congresso (“distritão”, em 2015 e 2019).
Não que o atual sistema seja perfeito.
Longe disso. São inúmeras as distorções a serem corrigidas para uma adaptação
aos tempos modernos do funcionamento dos partidos, da forma como se elegem
parlamentares e até de uma configuração de governos que permitisse a
interrupção de mandatos por caminho menos traumático que o impeachment.
Muito haveria a ser discutido para levar a
cabo um processo de aperfeiçoamento. Por exemplo, a retomada do debate sobre a
adoção do parlamentarismo, mas de maneira séria e consistente, e não da forma
açodada e referida apenas nas circunstâncias do momento, como já aconteceu nas
duas vezes (em 1963 e 1993) em que plebiscitos deram vitória ao
presidencialismo.
“Voto impresso é um entre os vários itens da
agenda do atraso que a Câmara chama de reforma política”
Outro ponto que poderia ser enfrentado, mas
é convenientemente ignorado, diz respeito ao voto facultativo, que nas
pesquisas recebe apoio crescente da população. A obrigatoriedade assegura
reserva de mercado aos partidos e aos políticos.
Também pela defesa das respectivas
conveniências é que suas excelências não abordam uma questão de interesse do
contribuinte: o excesso de dinheiro público para financiar as legendas. Hoje,
os valores dos fundos eleitoral e partidário somam quase 3 bilhões de reais e
vão além disso se contabilizada a renúncia fiscal das emissoras em decorrência
da veiculação do horário eleitoral, que de gratuito só tem o nome.
Nada disso é contemplado na dita reforma
ora em exame na Câmara. Isso porque a ideia não é reformar nem melhorar coisa
alguma, mas tentar ajustes em causa própria. Uma espécie de “se colar, colou”, cuja
posição de carro-chefe foi agora assumida pela história do voto impresso no
gentil patrocínio do deputado Lira em prol do delírio persecutório de Jair
Bolsonaro.
A intenção do presidente da República e
seus parceiros nessa empreitada, que, se exitosa, custaria ao bolso do público
2 bilhões de reais, não é conferir confiança à apuração dos votos, mas
disseminar a desconfiança sobre o resultado da próxima eleição.
É ingenuidade acreditar que cedendo a esse
desejo retira-se do presidente o pretexto para contestar o produto das urnas e
assim ficará tudo bem. Não ficará, porque o temor não é a fraude. Vem da
consciência de que a paga das pragas rogadas diariamente ao país pode ser a
derrota eleitoral.
Publicado em VEJA de 23 de junho de
2021, edição nº 2743
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