sexta-feira, 18 de junho de 2021

Maria Cristina Fernandes - A escalada da retórica militar bolsonarista

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Em 30 meses, discurso bolsonarista passa do acerto de contas com a punição de que foi vítima como capitão à pregação ao Exército de que Pazuello deveria ser perdoado porque todos são “seres políticos”

Do acerto de contas com os militares que o puniram e o levaram a deixar o Exército, o presidente Jair Bolsonaro passou, ao longo de seu mandato, a cobrar, das Forças Armadas e policiais militares, a lealdade, acima da Constituição, aos votos que o elegeram. É o primeiro passo para cobrar a adesão dos militares à contestação dos resultados eleitorais de 2022.

É isso que mostra a análise dos discursos presidenciais. A página oficial do Palácio do Planalto na internet registra 64 pronunciamentos, mas nem todos estão lá arquivados, como, por exemplo, aquele dirigido a generais em encontro fechado em São Gabriel da Cachoeira (AM), no fim de maio deste ano. Um trecho desse discurso, porém, foi colocado pelo presidente em suas redes sociais.

De velado, o golpismo nos seus discursos passou a ser escancarado. Se, no início, a presença em cerimônias de formaturas militares lhe servia para lembrar aos jovens que sua indisciplina lhe havia permitido chegar à Presidência, nos últimos tempos Bolsonaro impôs sua versão para o valor da indisciplina aos próprios generais, quando chegou a dizer que todos “eram seres políticos”. Ao longo desse período, Bolsonaro, que chegou a enfatizar, na sua estreia, a importância dos demais Poderes para o equilíbrio constitucional, acabou por apelar, neste ano, ao respeito supremo “de nós, militares” ao povo.

A transição no discurso foi marcada pela aprovação da reforma da aposentadoria e carreira militares, em 2019, que, além de beneficiar mais os altos oficiais, cobrou-lhes uma fatura muito menor do que aquela imposta aos civis pela reforma da Previdência. E também pela elaboração de dois Orçamentos que preservaram o Ministério da Defesa frente à média dos cortes de gastos. A escalada foi marcada ainda por portarias e projetos que aumentaram a entrada, a posse e o porte de armas, além de decisões que diminuíram o poder do Exército no controle dos armamentos.

E, finalmente, a mudança sutil na retórica bolsonarista foi acompanhada de mais benesses aos PMs, como o aumento para a categoria no Distrito Federal, que gerou uma onda generalizada de demanda por isonomia no resto do país, e o anúncio de um programa habitacional dirigido à corporação. A reação dos militares, por outro lado, minguou.

Do cotovelo estendido ao presidente pelo ex-comandante do Exército general Leal Pujol, passando pela nota de despedida do ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva (“Preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”), a subida de tom do discurso presidencial teve como derradeira resposta a nota do general Paulo Sérgio Oliveira. O atual comandante aceitou a justificativa de que a subida de um general da ativa ao palanque presidencial não foi um ato político por este não estar filiado a partido. Isso se deu a despeito da provocação do discurso bolsonarista, dias antes do perdão, de que todos, civis e militares, são “seres políticos”.

A seguir, a escalada radicalizada da retórica bolsonarista:

“Temos uma chance ímpar de mudar o Brasil. E não será eu sozinho. Será com mais pessoas, em grande parte com militares das Forças Armadas (...) Juntos pretendemos fazer nossa história, a guinada de nosso país no rumo de que não deveria ter saído”

30/11/2018 (Brasília) - O presidente eleito recebe do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, um diploma que lhe havia sido negado, em 1987, depois de ter sido culpado pelo planejamento da explosão de bomba numa adutora de água. O então capitão acabaria por ser absolvido pelo Superior Tribunal Militar.

“Meu muito obrigado, comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui.”

02/01/2019 (Brasília) - Posse do general Fernando Azevedo e Silva na Defesa. Às vésperas do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018, o então comandante publicara uma mensagem em que, “atento às suas missões institucionais”, dizia compartilhar “o repúdio à impunidade e respeito à Constituição”.

“Sabíamos naquele momento, general Fernando, que a Defesa estava sendo criada não por uma necessidade militar, mas por uma imposição política. A ideia era retirar, sim, os generais da mesa presidencial (...) E umas consequências negativas apareceram, num primeiro momento, no ano 2000, onde, sem a participação nossa, militares, apareceu a MP 2131 e depois a 2215, que tratava da nossa Lei de Remuneração. Foi a primeira grande reforma da Previdência onde apenas os militares foram sacrificados.”

10/06/19 (Brasília) - Comemoração dos 20 anos do Ministério da Defesa.

“Não cheguei até lá, tentei por duas vezes fazer o curso de comandos, mas nos exames preparatórios que não foram os físicos fui deixado para trás, gostaria de ter tentado o curso de Comandos (...) não tive sucesso mas estamos juntos nessa missão de bem zelar pelo nosso país (...) estou muito feliz com a minha vida pregressa com tudo aqui que aconteceu mesmo algo um tanto quanto esquisito lá atrás, mas serviu para ensinamento para que pudéssemos chegar aqui.”

15/07/2019 (Brasília) - Aniversário do Comando de Operações Especiais do Exército Brasileiro.

“Eu o jovem capitão, ele [general Acrísio Figueira] um vibrante comandante da nossa brigada. Tivemos um momento bastante tenso entre nós, mas preservou a lealdade e a verdade. E nele, nas suas palavras, naquele momento, fizeram um marco na minha vida. E esse marco, esse momento, fez com que um paraquedista alcançasse a Presidência da República.”

27/07/2019 (Rio de Janeiro) - Cerimônia de Brevetação dos Novos Paraquedistas.

“Ao nosso lado os demais Poderes, o Legislativo, aqui representado por Davi Alcolumbre; o Judiciário, pelo senhor Dias Toffoli; a PGR, pela senhora Raquel Dodge, nós temos como realmente cumprir aquilo que prometemos durante a campanha.”

17/08/19 (Resende-RJ) - Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma “Bicentenário da Independência”.

“Vamos marchar para o sucesso. Não nos faltam é inimigos como os de sempre, que teimam em ganhar a guerra de informação contra a verdade.”

23/08/19 (Brasília) - Dia do Soldado.

“Nós nos livramos, mas não nos esqueçamos que o inimigo está aí do lado, o inimigo não dorme. O que alguns dizem, que o cara lá é inocente e fica o tempo todo massacrando, batendo na cabeça do povo, fizeram o mesmo há pouco tempo, dizendo que lutavam por democracia e não pela ditadura do proletariado.”

02/10/2019 (Brasília) - Assinatura de acordos da Operação Acolhida, de assistência a venezuelanos.

“Mais importante que combater a corrupção é combater a questão ideológica. E povo desarmado, a ambição de alguns que estão de plantão no governo, naquele momento, sempre é uma tentativa para tomada do poder, não há reação.”

23/11/2019 (Brasília) - Palestra na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.

“As Forças Armadas, ao longo de décadas, foi (sic) maltratada, foi (sic) perseguida, mas, pela formação e pelo caráter, nós nos mantivemos em pé. E essa perseguição é simplesmente por uma coisa, é a busca por parte daqueles do poder absoluto, e sabem que nós militares somos o último obstáculo para o socialismo.”

12/12/2019 (Rio de Janeiro) - Entrega de Espadas aos formandos da Turma “José Vitoriano Aranha da Silva”.

“Mais que a carreira militar, vocês têm tudo para amanhã ser chefes dessa Nação, como hoje eu sou. Daí o nosso compromisso de dar a vida pela Pátria (...) Nós estamos aqui para decidir. Decidir por 210 milhões de brasileiros.”

17/10/2020 (Resende-RJ) - Cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma “Centenário da Missão Militar Francesa no Brasil”.

“Só nós militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica pode (sic) dizer aos 210 milhões de habitantes que a liberdade do nosso povo passa por nós e nós, com o sacrifício da própria vida, defenderemos esse bem maior do povo, um povo que nasceu e será livre, que jamais permitirá que a cor da sua bandeira seja mudada.”

27/11/2020 (Guaratinguetá-SP) - Solenidade de Promoção à Graduação de Sargento da Escola de Especialistas de Aeronáutica.

“O papel do militar, além daquele garantido e definido na nossa Constituição, temos uma preocupação muito maior, que é a nossa soberania e garantir a nossa liberdade, tão ameaçadas nos últimos tempos.”

05/12/2020 (Resende-RJ) - Solenidade de Restituição de Espadins e Declaração de Aspirantes da Aman.

“Os Três Poderes são independentes e harmônicos, mas o maior poder é o do povo, repito, povo esse ao qual devo lealdade absoluta. Não se esqueçam disso, a imprensa jamais estará do lado da verdade, da honra e da lei, sempre estará contra vocês, pensem dessa forma para poderem agir.”

18/12/2020 (Rio de Janeiro) - Solenidade de Conclusão do Curso de Formação de Soldados da PM do Rio.

“Na guerrilha a gente não sabe onde está o inimigo. Muitas vezes está ao nosso lado, mas nós vamos, cada vez mais, buscando maneiras de enfrentar também esse inimigo. Porque o que interessa para todos nós é proporcionar dias melhores ao povo.”

06/04/2021 - Posse do ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos. Uma semana antes, os comandantes das Três Forças, num gesto inédito, foram demitidos pelo presidente.

“Como dizia o então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, o povo nos dá o norte, a esse povo que nós devemos lealdade absoluta.”

19/04/2021 (Brasília) - Dia do Exército. Bolsonaro cita o ministro que mandou prendê-lo, em 1986, depois de artigo em que o então capitão reclamava dos soldos militares.

“O que nós queremos é paz, progresso e, acima de tudo, liberdade. E esse último desejo passa por vocês. Vocês é que decidem, em qualquer país do mundo, como aquele povo vai viver. Ninguém está aqui para fazer discurso político, mas somos seres políticos.”

27/05/2021 (São Gabriel da Cachoeira, AM) - Almoço com generais por ocasião da inauguração de ponte de madeira na BR-307. Quatro dias antes, Bolsonaro levara um general da ativa para seu palanque político. O comandante Paulo Sérgio Oliveira arquivou processo contra Pazuello.

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